Em 'Afirma Pereira', Antonio Tabucci mostra os dilemas de um jornalista português em plena ditadura salazarista

Autor também escreve tendo como pano de fundo o fascismo italiano e a guerra civil espanhola

por André Di Bernardi Batista Mendes 16/11/2013 00:13
Morena Brengola/Getty Images
(foto: Morena Brengola/Getty Images)
Pereira era viúvo, cardíaco e infeliz. Pereira encontrou, numa noite de setembro de 1992, a pessoa ideal, o interlocutor perfeito para “dizer-se”, para “contar-se”. “Naquela noite de setembro, compreendi vagamente que uma alma, que vagava pelo éter, precisava de mim para se narrar, para descrever uma escolha, um tormento, uma vida.” Em agosto de 1993, o italiano Antonio Tabucchi escreveu a última página do livro 'Afirma Pereira'. A obra acaba de ser relançada pela editora Cosac Naify, depois de 'O tempo envelhece depressa' (2010) e 'Noturno indiano' (2012).

Escrito em forma de testemunho, 'Afirma Pereira' narra as desventuras de um jornalista viúvo, de meia-idade, que se ocupa de sua saúde frágil e trabalha para a página cultural de um jornal conservador. O livro se passa em Portugal, no final dos anos 1930, quando estava se firmando a ditadura salazarista, que duraria até 1974. Tabucchi também escreve tendo como pano de fundo o fascismo italiano e a guerra civil espanhola. É inegável, portanto, a aura política que envolve e empresta brilho e diversos sabores ao livro. Pereira, um ordinário ser, apega-se, num primeiro momento, à sua rotina, a despeito do clima de terror e de catástrofes iminentes, a despeito da censura, distante de um clima geral de opressão que nada mais faz que ampliar o medo. Pereira bebe limonada sempre no mesmo local, é servido pelo mesmo garçom, percorre as mesmas ruas – em horários fixos – e conversa com o retrato da mulher morta. Nada mais triste.

Outro problema, este insolúvel: já na primeira página, “naquele belo dia de verão, com a brisa atlântica acariciando o topo das árvores e o sol resplandecendo, e a cidade que cintilava, literalmente cintilava sob sua janela”, Pereira começa a refletir sobre a morte. Pereira, até aquele momento, era católico, “um bom católico” que, entretanto, não acreditava na ressurreição da carne.

Somos os nossos melhores inventores. Somos inverificáveis até certo ponto e tudo começa a partir do desejo. O livro aborda o núcleo de uma reviravolta. A rotina de Pereira reflete uma passividade diante da vida e dos acontecimentos que o rodeiam, mas tudo muda quando ele conhece Monteiro Rossi, jovem que passa a colaborar para o jornal. A função deste seria escrever necrológios antecipados de autores ilustres. Rossi e sua namorada, Marta, auxiliam o protagonista de forma definitiva e arrebatadora. Além de Marta e Rossi, outros personagens tornam-se importantes: um padre (António) e um médico (doutor Cardoso, que lhe apresenta a Confederação das Almas, uma interessante e sugestiva teoria filosófica). A amizade, a influência é uma espada, é uma corda desprovida de pontas e desespero.

Toda convicção é, de certa forma, imprecisa, e as razões do coração não são as mesmas para todos. As afirmações de Tabucchi chamam a nossa atenção para um grande dilema: um verdadeiro homem consolidado é aquele que sabe de sua pequenez, que encara a sua incompletude. “Senta-te ao sol. Abdica/ E sê rei de ti próprio”, afirma Fernando Pessoa. “As razões do coração são as mais importantes”, afirma Pereira, num importante trecho do livro.

Tudo muda para Pereira a partir de uma série de acontecimentos. Tudo muda para Pereira depois que algumas palavras – proibidas – surgem impressas. Exercício de reflexão, para além e sobre os limites impostos e incorporados por um homem, Tabucchi fala sobre avessos, sobre mudanças e sobre descobertas. É preciso água e tempo. É preciso inventar um trampolim feito de palavras, é preciso, sobretudo, coragem. É preciso força para enxergar, é preciso coragem para ouvir, é preciso alegria para chegar ao outro; é preciso coragem e atos radicais para chegar a si mesmo.

A poderosa e burra mão da violência, sem saber (e não é sempre), acaba, no caso do livro, por moldar, acaba por lapidar a personalidade de um homem inteiro, um homem que, como poucos, soube esperar para, enfim, cantar (ainda que com palavras de dor) dentro de sua integridade recomposta. Pereira, entregue ao rio dos acontecimentos, passa a obedecer a outros desmandos naturais. A nossa individualidade (que, no caso de Pereira, bate de frente com a realidade), a nossa existência pode e deveria ser muito mais rica e intensa de pássaros. Antonio Tabucchi acha para Pereira, por fim, significados políticos e existenciais para eventos e infortúnios.

Estilo discreto O silêncio, o vazio, a brutalidade. Quem ou o que se apropria de forma grotesca do que existe em nós de mais precioso? Por que, que força nos impele a entrarmos em histórias que, a princípio, certas sombras, certos cães insistem em morder, insistem em dizer que não nos dizem respeito? Que água, que força, que combustível nos acorda, que tipo de fagulha raríssima serve para acender um homem? Antonio Tabucchi sabe algumas respostas, mas as diz de forma delicada, sem sobressaltos, sem gritos de rock e despreparo, dentro de uma linearidade inteligente e sedutora, com um estilo que preza a economia.

Kabuki é uma forma de teatro japonês, conhecida pela estilização do drama e pela elaborada maquiagem usada pelos atores. Em Afirma Pereira, Antonio Tabucchi trabalha no sentido contrário. Ele parte de uma espécie de drama para chegar, para confiar no real. Limpando camadas sobrepostas de dúvida, descaso, solidão e desamparo, o escritor, a cada página, com a força das palavras, vai revelando, aos poucos, um rosto único, humano até a alma, esta sim talvez passível de ressurreições. Tabucchi cria canais de aproximação.

O desejo de liberdade é uma limonada, é um vinho do Porto que se abre e que se toma no escuro; liberdade é sinônimo de veneno. Tabucchi, por meio de Pereira, mostra que é preciso, sim, interferir para, lembrando Fernando Pessoa, outro português incrível, aprendermos a levitar diante do desassossego. (Vale lembrar: apaixonado pela obra do poeta, Tabucchi traduziu para o italiano diversos textos do mestre dos heterônimos). Todos os atos carregados de generosidade, toda tomada de consciência implica necessariamente a formação de ventos e tempestades. “Pereira enfim conhece a capacidade de indignar-se e de agir. Sem a qual, no fim das contas, a vida vale bem pouco”, afirma, na apresentação do livro, Maurício Santana Dias.

Tabucchi nasceu em Pisa, em 1943, mas desde 2004 tinha também nacionalidade portuguesa. Um dos principais escritores europeus contemporâneos, Antonio Tabuchhi morreu em 25 de março de 2012, em Lisboa.

AFIRMA PEREIRA
• De Antonio Tabucchi, tradução de Roberta Barni
• Editora Cosac Naify
• 160 páginas, R$ 29,90

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