Lei de incentivo aos laranjas

"É preciso debater os mecanismos de financiamento da cultura levando-se em conta não apenas o aprimoramento da legislação, mas também a necessidade de sua extinção"

por João Paulo 09/11/2013 00:13
Yasuyoshi Chiba/AFP
(foto: Yasuyoshi Chiba/AFP)
Esta semana, na segunda-feira, uma reunião entre a “classe artística” e o deputado Pedro Eugênio (PT-PE) na Sala João Ceschiatti do Palácio das Artes teve como pauta o projeto que está tramitando há anos, que deve substituir a Lei Rouanet, ou, como é mais conhecida, a lei federal de incentivo à cultura. A nova legislação foi batizada de Procultura e já esteve em outras mãos antes de a relatoria chegar ao deputado pernambucano. O projeto já passou por debates públicos, comissões do Congresso e está prestes a ser votado. Quem convocou a reunião em Belo Horizonte foi o deputado Marcus Pestana (PSDB-MG), o que a princípio mostra um interesse suprapartidário na discussão.

Tudo estaria muito bem, democrático e transparente, se o objetivo da reunião e os atores presentes fossem representativos de todas as posições. Não eram. É preciso debater os mecanismos de financiamento da cultura levando-se em conta não apenas o aprimoramento da legislação, mas também a necessidade de sua extinção, em razão de seu histórico de descaminhos. A legislação que nasceu para incentivar a cultura, ancorada na carência de recursos do setor público, acabou por se tornar o mecanismo por excelência, o que gerou uma situação de completo desmantelo da área. Sem entrar em considerações que recuam no tempo e olhando para a frente, as leis de incentivo são hoje um freio na democratização, descentralização, qualificação e formação de mercado para a cultura no Brasil.

Quem participou do debate com o relator do Procultura, e que portanto se credenciava a apresentar soluções da categoria, eram, na maioria, pessoas ligadas muito mais à intermediação que à criação. E não se trata de um desvio dos responsáveis pela convocação da reunião. O que as leis de incentivo à cultura criaram de mais poderoso foi uma casta de atravessadores, gestores, captadores, produtores, prestadores de conta e outros profissionais que se interpõem entre os recursos e os artistas. Por isso não estavam presentes novos artistas e produtores independentes, que teriam muitas contribuições para o debate. O que se via era um estamento de pessoas que se profissionalizaram para ter acesso aos recursos intermediando uma relação que poderia fluir de forma mais direta e, por isso, menos onerosa. A fonte jorra dinheiro que vai sendo perdido em pequenos igarapés e vertedouros à margem da criação.

Levantamentos conservadores dão conta de que, de cada R$ 1 destinado a um projeto contemplado pelas leis de incentivo, apenas R$ 0,50 chegam de fato aos artistas, ficando a metade da verba na mão dos escritórios de “produtores”. Este é apenas um dos desvios plasmados pelo tempo. Não fosse um sorvedouro importante de recursos que poderiam ser mais bem aplicados, ainda representam uma transformação filosófica e política do setor, que hoje – como mostra a reunião na João Ceschiatti – põe burocratas falando em nome de artistas e artistas falando como burocratas para defenderem empresas das quais dependem.

O mais curioso é que há uma crítica universal às leis de incentivo. No entanto, quando se trata de modificá-la o discurso não é contra a norma, mas a favor de maior protecionismo. Em outras palavras, todos concordam que a lei é problemática, mas, em vez de acabar com ela em favor de novos mecanismos, preferem a lógica do “ruim com ela, pior sem ela”, com a defesa corporativa de setores que melhor transitam em sua lógica e balcões. Os chamados produtores querem, na verdade, que a lei jogue a favor deles, ainda que isso signifique prejuízo para o setor como um todo.

A Lei Rouanet e as legislações estaduais e municipais padecem da lógica de favorecer laranjas. Esse personagem finge que tem algo de seu para, com a posse vicária, anistiar o outro que não pode ter ou parecer que tem. Na cultura o processo é semelhante: o recurso público é repassado para empresa privada (na forma de isenção de impostos devidos), que o utiliza de acordo com seu interesse. Nos dois casos, o dinheiro não é de quem declara, mas de quem se retira do jogo por motivos torpes. Nos crimes de lavagem de dinheiro, a motivação é fugir da cadeia; nas leis de incentivo, fugir das responsabilidades.

O que o Estado, em todos os seus níveis de governo, faz é pegar dinheiro público e dar à iniciativa privada o direito de utilizá-lo em projetos culturais próprios, estampando para isso sua marca e auferindo ganhos sucessivos: tributários, de marketing e até comerciais (no caso da Lei do Audiovisual, as empresas utilizam recurso público e se tornam sócias de empreendimentos que podem se revelar lucrativos. Além disso, neste caso, para cada R$ 1 incentivado a empresa recebe R$ 1,25 de anistia fiscal). Com isso, o Estado abdica de sua função de formulador de política para se tornar sócio de projetos de exposição pública feito com sua grana (melhor: com o dinheiro do povo que repõe nos cofres o que as empresas deixam de pagar. E, o pior, ainda chamam esse processo de mecenato e os próprios produtores saem em defesa das empresas para ampliar seu patamar de isenção).

Mecenas de araque

Há, de acordo com a lei, três modalidades de recursos a serem aplicados na cultura: o fundo, o mecenato e outra modalidade de financiamento voltada para projetos lucrativos, que topariam receber “empréstimos” em condições facilitadas. Esta última modalidade, o Ficart, virou letra morta. Com isso, o que se arrecada de recursos para o setor fica destinado ao fundo e ao mecenato. No fundo estariam os projetos bancados diretamente pelo Estado, em razão da política cultural vigente. Na verdade, o fundo foi sendo engolido pelo mecenato, que são os recursos que as empresas “investem” em cultura e que formam a maior parte do bolo. O fundo, para a chamada “classe artística”, leia-se produtores vitaminados pelas leis de incentivo, é visto como território da experimentação e do folclore. Que não deve ser levado muito a sério.

Desvalorizar o fundo é, na verdade, exterminar a necessidade de uma política cultural digna do nome. O que o falso mecenato faz é, na verdade, financiar com recurso público interesses privados que atendem a um modelo quase sempre definido pelo que se chama de mercado. No entanto, os defensores do mercado são os primeiros a abrir mão do risco para se acobertar nos departamentos de marketing das empresas laranjas do setor cultural. E, quando surge alguma boa vontade, ela se dirige no máximo a defender a descentralização e o apoio a projetos mais ousados, como se isso fosse uma “concessão” à cultura.

A desfaçatez é ainda maior no caso dos institutos, fundações e centros culturais de empresas como a Fiat, Banco do Brasil, Petrobras, Itaú, Vale, Usiminas e outros, que capitalizam suas marcas com recursos públicos e posam de grandes mecenas. Na verdade, gastando o dinheiro do contribuinte, elas desenvolvem ações que fazem parte de sua política interna. O mesmo – e isso é ainda mais grave – se dá com a operação do setor público de cultura, que inscreve seus projetos na lei, aprova-os e capta recursos em empresas públicas e privadas com boa relação com os governos. O Estado faz minguar seu próprio orçamento e se iguala com outros produtores na busca de recursos que ele mesmo deixa de tributar.

Quem assiste a uma produção da Fundação Clóvis Salgado, por exemplo, vê sempre um filmete que diz que o espetáculo tem patrocinadores privados, quando na verdade tudo é produzido com dinheiro do povo. A mensagem correta deveria ser – como em todas as chancelas da lei de incentivo – “este espetáculo foi financiado com o seu dinheiro”. O povo é o patrocinador master da lei de incentivo, já que é seu dinheiro que cobre o que as empresas não pagaram e que o Estado gentilmente repassa para que a iniciativa privada faça sua graça com chapéu alheio. Ao triangular recursos para cumprir suas obrigações, o próprio Estado se tinge de laranja.

Por fim, as leis de incentivo estão quebrando mais duas pernas do sistema: a formação de público e o atraso na constituição de força de produção cultural sustentável. No caso da formação de plateias, pelo reforço da lógica da mesmice e do afastamento do público que não tem acesso a espetáculos incentivados e com ingressos muito caros. No caso do sistema de produção, pela postura “socialista reacionária” de tirar de todos para dar a poucos, fazendo da cultura um terreno defeso de riscos e, por isso, sem preocupação com o profissionalismo. Não é incomum nos projetos culturais “patrocinados” por empresas que quem menos ganhe seja o artista e o público. Fazer a roda girar gasta mais energia que deslocamento. A legislação de incentivo é entrópica.

As leis de incentivo contribuíram ainda para desmotivar o investimento direto das empresas (por que ela vai dar seu dinheiro se pode usar o que é devido como imposto, portanto recurso público?), prática que tem séculos na história da civilização, contribuiu para a formação do que entendemos como cultura e gerou um sentimento de reciprocidade entre a produção e a sociedade. Que as empresas não queiram dar sua contrapartida até se entende, mas que “produtores” se levantem para defender a isenção completa de impostos “investidos” na cultura é, pelo menos, de se estranhar. Foi, por exemplo, o que se viu na reunião de segunda-feira na João Ceschiatti. As empresas não precisam sequer levar seus pleitos de isenção total, os produtores fazem isso por elas.

Falta política


A lei de incentivo precisa ser extinta, a política cultural precisa ter mais recursos orçamentários, os mecanismos de controle devem ser mais rígidos e a participação social mais intensa. É a forma de começar a mudar o jogo. Para quem diz que a Lei do Audiovisual, com sua liberalidade extravagante, salvou o cinema, é bom lembrar que as produções, em sua maioria, não se pagam (cerca de 80% rendem menos na bilheteria do que custaram) e que o grande mérito do setor está na abertura de novos canais de exibição, sobretudo por meio de políticas públicas e cotas de exibição em salas de cinema e na televisão. Sem falar nos projetos para filmes de baixo orçamento, que multiplicaram as possibilidades não apenas em termos financeiros, mas também de linguagem. O que vem salvando o cinema é a política, não é a Globo Filmes.

O que é mais importante, e acredito que todos concordem com isso, é que a cultura deve ser o principal. Assim, é preciso aumentar o orçamento do setor (todos se lembram da briga de Gilberto Gil para elevar o orçamento a ínfimo 1% do bolo da União) e, sobretudo, fazer com que seja dirigido pelo interesse público. Isso significa desvincular o setor totalmente do marketing empresarial, preparar a infraestrutura, formar pessoal qualificado para a gestão, investir na diversidade e dar transparência em todos os passos do processo.

Outro desafio é criar novos parâmetros de financiamento, dos espetáculos às instituições (como os pontos de cultura), além de criar mecanismos de financiamento que dialoguem com o mercado e ajudem na formação de público, como o incentivo à gratuidade em espetáculos feitos com recursos públicos, vale-cultura, parceria com o setor educacional e outros. A política cultural precisa ainda – e não tem mostrado capacidade para isso – acompanhar as mudanças tecnológicas e políticas, que geraram novos processos e agentes. As bandeiras antigas do setor, sideradas pelo consumo, estão rotas, não servem mais. Por isso é até curioso ver velhos produtores falando tanto em desenvolver a indústria cultural, com a amnésia histórica que lança mão de um conceito frankfurtiano de forte potencial negativo (cultura produzida industrialmente, sem potencial inovador ou crítico) como sendo um horizonte desejável. Deus, o diabo e a Terra do Sol nos livrem da indústria cultural.

O exemplo de outros países pode servir para o debate sobre novos mecanismos. Outro caminho é ouvir a geração que vem fazendo arte de qualidade, democrática e consequente, com novos meios e estratégias de chegar ao público. Por fim, é preciso defender que a parceria não deve se limitar ao mercado ou aos ministérios da área econômica – o que é importantíssimo – mas também com o setor da educação. Quanto melhor a educação, mais abrangente a cultura. A Lei Rouanet já vai tarde. Que o Procultura seja uma transição a um novo tempo em que a arte seja mais importante que o marketing e o artista criador mais central que o captador.

Cultura é questão de interesse público, e assim deve ser tratada. A única saída republicana e democrática é a criação de fundos públicos de financiamento que permitam uma transição que deixe no passado o modelo que criou uma casta de atravessadores, deseducou a sociedade e viciou o mercado. Com a colaboração desinformadora dos meios de comunicação, é bom reconhecer. A cultura sempre soube se reinventar. A hora é agora.

 jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

MAIS SOBRE PENSAR