O sentimento de herança

por 09/11/2013 00:13
José Newton Coelho Meneses

Com frequência surgem discussões acaloradas motivadas por interpretações díspares da história. Há poucos dias, por ocasião da Feira do Livro de Frankfurt, em que o Brasil era destacado, o escritor Luiz Ruffato fez um discurso agressivo, associando nossa cultura, e nossa história a um genocídio inicial na colonização e a uma herança dessa prática na tradição construída por nós. Segundo o escritor, um costume fundamentado neste genocídio inaugural permaneceu na longevidade histórica de nossa constituição como nação. A aparente superficialidade desta interpretação histórica, em que se negligencia a força dinâmica da mudança no tempo e se apega a uma ideia de origem, a marcar indelevelmente o nosso repertório cultural é, para um historiador, assustadora. No entanto, ela compõe uma visão geral que se faz da história. À parte a busca agressiva de uma retórica comunicativa com propósitos políticos, o literato expressou, portanto, perspectivas comuns na construção pública da história, com força primordial na origem, no nascimento, na sequência cronológica de fatos, na herança, na permanência, na memória construída socialmente, nas oralidades.

Como ressalta Henri-Pierre Jeudy em O espelho das cidades, “o futuro do homem continua sempre pensado em referência a seu passado”. Neste ponto, público em geral e acadêmicos agem sob a mesma premissa: o passado é interpretado para o entendimento do nosso tempo presente e daquilo que pensamos construir como devir. A ideia de patrimônio tem o substrato da construção histórica e da memória social construída como ética, como representação da sociedade e, sobretudo, como diálogo interdisciplinar. Patrimônio cultural, assim, é interpretado como bem identitário, como herança e, até, como relíquia que se quer guardar. O exemplo de nossas cidades antigas, coloniais, equivocadamente chamadas de “históricas”, como se apenas elas o fossem, é exemplar da forma como populações preservaram suas paisagens na dinâmica da construção temporal com sentimentos de heranças e de relíquias, mas, sobretudo, como bens a serem memorizados.

E o que guardaram os habitantes de cada uma dessas cidades antigas? Guardaram sua história vivenciada socialmente no decorrer do tempo. Sim, essas cidades foram guardadas antes de qualquer lei patrimonialista, antes de qualquer política de educação patrimonial. Alguns argumentam que essa preservação foi devida à decadência econômica pela qual passaram essas urbes, o que é apenas uma mínima parcela de percepção das realidades e das histórias desses lugares. A falta de pujança desenvolvimentista é um dos inúmeros elementos que devemos considerar na análise dessa conservação. Outros tantos fatores, e dentre eles o valor identitário de uma herança que não se quis esquecer, é de fundamental importância em nossa consideração e em estudos sobre o patrimônio das cidades coloniais ou das cidades antigas de Minas Gerais, do Brasil ou do mundo.

O bem com valor de patrimônio, qualquer que seja a sua natureza, tem menos a ver com as interpretações de historiadores, etnólogos, arqueólogos, arquitetos etc. e mais ligação com o sentimento de herança, de legado, de identidade, embora não se possa diminuir à importância das interpretações acadêmicas. Essas devem seguir um percurso de identificação e submeterem-se, serem sensíveis, á memória social construída e em construção pelas comunidades que guardaram os bens interpretados. Aí, qualquer pasteurização interpretativa é execrável e não contribui com a preservação e muito menos com a sustentabilidade dela e sua valorização por quem quer conhecer e entender o sentido das construções identitárias.

A ideia de patrimônio deve nos dar a dimensão da consistência complexa da cultura. E, então, fica difícil separar o patrimônio cultural em categorias como “material” e “imaterial”. A vivência, a experiência humana não os separa. É preciso considerar essa ideia na sua construção social, na configuração de sua memória e de sua ética, na perspectiva da política e das escolhas coletivas. Para Hannah Arendt, em A crise da cultura, essas dimensões “imbricam-se mutuamente porque não é o saber ou a verdade que está em jogo, mas, sobretudo, o julgamento e a decisão, a troca criteriosa de opiniões incidindo sobre a esfera da vida pública e sobre o mundo comum”. Não se pode, assim, dimensionar o patrimônio de uma sociedade sem considerar as suas escolhas, a construção seletiva da memória social. É, portanto, em um fundamento ético que se percorre o caminho da interpretação dos patrimônios culturais. Tornar inteligível o patrimônio de um grupo social ou de um povo é, em síntese, dar sentido a um repertório de valores que identificam essa sociedade, pelo que ela construiu como sua identidade.

A leitura pública do que é história, do que a memória social guarda e do valor identitário das escolhas patrimoniais marca a interpretação pública do que é história e do que é patrimônio histórico. Os registros e tombamentos têm, necessariamente, que atentar-se para essa leitura social. É a experiência, a vivência que dão o norte interpretativo do que queremos patrimonializar.

Rede brasileira

A mesa-redonda História: vários públicos, várias narrativas, que será realizada dia 14, às 14h, no Museu Histórico Abílio Barreto, em Belo Horizonte, marca o lançamento da Rede Brasileira de História Pública (RBHP). O evento é organizado pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFF e pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Participam da programação o cineasta Helvécio Ratton, o jornalista João Paulo, a professora de museologia da UFMG Letícia Julião e o professor Pablo Oliveira Lima, da Faculdade de Educação da UFMG. Às 17h30 haverá entrevista pública e apresentação musical de Titane.

. José Newton Coelho Meneses é professor associado da UFMG

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