Tramita no Congresso projeto que modifica profundamente as regras de contratação de mão de obra no país

Na contramão dos protestos de junho, a proposta ameaça o emprego do brasileiro

02/11/2013 06:00
Rubens Goyatá Campante

O seu emprego corre perigo. Tramita no Congresso Nacional uma proposta que traz séria ameaça aos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários de milhões de brasileiros. O Projeto de Lei nº 4.330-A, apresentado em 2004 pelo deputado Sandro Mabel (PMDB-GO), permite ampliar as hipóteses de terceirização do trabalho para todos os segmentos econômicos – públicos e privados – e para todas as atividades das empresas e órgãos públicos, tornando regra o que era exceção no ordenamento jurídico brasileiro. A proposta se encontra na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. Se aprovada, será posta em votação na casa. Já foi requerido regime de urgência para sua tramitação.

A terceirização permite que o empregador, público ou privado, beneficie-se do labor de funcionários sem vínculo empregatício formal com ele, mas com uma empresa fornecedora de mão de obra. Há situações específicas em que ela é permitida no Brasil: na contratação por empresa de trabalho temporário; de prestadores de serviços de vigilância, conservação e limpeza; e de trabalhadores que prestam serviços nas chamadas atividades-meio – e não nas atividades-fim.

Atividade-fim é aquela diretamente ligada ao objeto social da empresa. Já a atividade-meio auxilia a consecução desse objeto social. Assim, uma escola particular, cujo objetivo e fonte de lucro são a prestação de ensino, não pode contratar professores terceirizados, mas isso é permitido em relação ao vigia, a faxineiros, secretários, etc.

Se aprovado, o PL 4.330 permitirá que o empregador utilize o labor terceirizado em todas as atividades da empresa. Ou seja, a escola poderia dispor não só de vigias, faxineiros e secretários terceirizados, mas também dos próprios professores, caso julgasse conveniente. Boa parte dos empresários julga a terceirização conveniente. Afinal, segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a média salarial dos terceirizados no Brasil é 27,1% inferior à dos trabalhadores com vínculo direto de emprego. Sua jornada semanal tem três horas a mais que a dos trabalhadores diretos; sua permanência no emprego é de 2,6 anos, enquanto a dos trabalhadores diretos é de 5,8 anos; e, o dado mais perverso de todos: de cada 10 acidentes de trabalho no Brasil, oito ocorrem com funcionários terceirizados.

Não é difícil, portanto, prever o que ocorrerá no Brasil se a terceirização for amplamente liberada. É de tal monta a gravidade da ameaça que o próprio Tribunal Superior do Trabalho (TST) enviou ofício ao presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, assinado por 19 dos 27 ministros. O documento afirma que o PL 4.330, ao permitir a generalização da terceirização para toda a sociedade e a economia, “certamente provocará gravíssima lesão social de direitos sociais trabalhistas e previdenciários no país, com a potencialidade de provocar a migração massiva de milhões de trabalhadores, hoje enquadrados como efetivos de empresas e instituições tomadoras de serviços, em direção a um novo enquadramento como terceirizados, deflagrando impressionante redução de valores, direitos e garantias trabalhistas e sociais”.

Vácuo Defensores do projeto lembram que há um vácuo normativo no país em relação a algo que representa a realidade econômica e social, sendo necessária, portanto, sua regulação. O vácuo normativo existe. A questão crucial da terceirização nas atividades-meio de empresas e instituições não é definida por lei, mas por uma súmula do TST que veda a terceirização nas atividades-fim. Súmulas são orientações jurisprudenciais, que, em nosso ordenamento jurídico, não são impositivas, mas sinalizam que, se o caso for submetido ao Judiciário, fatalmente tribunais superiores o julgarão de acordo com o entendimento que seguem sobre o tema.

Além de ser mencionada por uma súmula do Judiciário, e não por um dispositivo legal que obrigue formalmente os empregadores, a distinção entre o que sejam atividades-meio e atividades-fim das empresas e instituições é nebulosa e controversa. É justamente nas brechas dessa indefinição e desse vazio legal que a terceirização tem se expandido no Brasil, trazendo, via de regra, a precarização dos direitos sociais e trabalhistas.

Mesmo quando a terceirização é amparada por leis específicas, caso dos serviços temporários e de vigilância, limpeza e conservação, tal precarização também ocorre. E não só porque esses setores são formados por trabalhadores de condição social vulnerável, mas pela forma como se efetivam os contratos de terceirização. Na administração pública, cada vez mais premida por imperativos de contenção e rígido controle de gastos, tais contratos são, muitas vezes, definidos somente pelo parâmetro do menor preço proposto pelas fornecedoras de mão de obra, sem se levar em conta sua capacidade técnica de adimplir os serviços contratados e sua idoneidade moral.

Vencendo as licitações pelo menor preço, às vezes até com preços inexequíveis, fornecedoras de mão de obra garantem seu lucro com o menor gasto possível com funcionários. Isso, quando não fecham as portas e desaparecem, deixando centenas de trabalhadores sem seus direitos. O próprio Judiciário trabalhista conta com milhares de terceirizados nas atividades de limpeza, vigilância e conservação. Em 2011, cerca de 300 funcionários da copa e limpeza do Palácio do Planalto enfrentaram meses de dificuldades para receber verbas de sua rescisão quando a contratante deixou de atuar junto à Presidência da República.

Capitalismo Assim, também é fato incontroverso que a terceirização é uma realidade econômica e social, triste realidade para os trabalhadores. O discurso liberal a apresenta como algo inevitável, fruto de inescapáveis tendências de desenvolvimento tecnológico e de métodos mais modernos e eficazes de gestão institucional e empresarial. Na verdade, a terceirização, enquanto inegável desorganização do mercado de trabalho e derruimento dos patamares mínimos de direitos dos trabalhadores, é fruto de escolhas macropolíticas, tomadas ao nível dos principais centros de poder do capitalismo internacional.

A principal questão foi a maneira como os Estados Unidos reafirmaram sua hegemonia mundial a partir da década de 1980, ameaçada pela crise energética dos anos 1970 e, principalmente, pelo imenso déficit interno no balanço de pagamentos, gerado por gastos militares excessivos com a corrida armamentista da Guerra Fria e pela política fiscal ultraliberal que se recusou a taxar o grande capital e a propriedade.

Os ajustes macroeconômicos empreendidos pelos EUA para fazer frente a essas ameaças, por meio de flutuações das taxas de câmbio e juros, trouxeram a expansão descontrolada do sistema financeiro privado internacional. O sistema econômico internacional, definido em Bretton Woods depois da 2ª Guerra Mundial, pretendia a “domesticação” do sistema financeiro e sua submissão aos interesses da produção e do comércio: o capital financeiro era importante, mas não essencial, sua função seria incrementar a produção e o comércio. Essa hegemonia da produção e do comércio estava umbilicalmente ligada à assunção, pelo Estado, da função de promover, dentro do capitalismo avançado, o bem-estar e a regulação da sociedade civil – algo que o mercado, por si, não cumpre. Os corolários dessas políticas de bem-estar eram o crescimento econômico e a busca do pleno emprego, tido como direito do cidadão – para tanto, o câmbio controlado e os juros baixos eram cruciais.

A questão é que os EUA nunca aderiram plenamente a esse esquema, e a “domesticação” do sistema financeiro foi sendo solapada desde a década de 1970, até se acabar de vez nos anos 1980. Com os bancos hegemônicos e os juros nas alturas, as condições de financiamento dos Estados ficaram dramáticas, agravadas pela evasão tributária estimulada por paraísos fiscais – que concentram hoje, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), metade do fluxo financeiro internacional, numa combinação perversa de evasão fiscal das grandes empresas e de dinheiro da criminalidade. O setor produtivo foi afetado pelo aumento da competitividade internacional e pela prevalência da renda financeira sobre a produtiva. A resposta foi a transformação gerencial e tecnológica na qual a desestruturação trazida por fenômenos como a terceirização se insere.

Equidade Seria inevitável, então, que as empresas, sob o peso da competitividade e da pressão financeira, aderissem a uma reestruturação produtiva que fatalmente corta postos e direitos trabalhistas? Não. É possível, sim, que a modernização produtiva e tecnológica da economia se mantenha compatível com padrões de equidade distributiva na sociedade. Alemanha, Coreia e Japão (de onde, aliás, saiu o toyotismo, modelo produtivo alternativo ao fordismo/taylorismo típico do Estado de bem-estar, sem que isso acarretasse desequilíbrios sociais como em outras partes) são países em que a presença de políticas financeiras e econômicas determinadas a partir da integração e negociação, dentro do aparelho do Estado, de bancos, grandes empresas e sindicatos, tem logrado tal compatibilização. São países de capitalismo organizado e não de capitalismo selvagem, como o Brasil.

A consequência da aprovação de um projeto como o PL 4.330 será o aprofundamento do capitalismo selvagem. Se é necessário, realmente, regular a terceirização, é para estabelecer-lhe limites mais estritos e não para transformá-la em regra. Mas tudo indica que liberá-la completamente é o objetivo de boa parte do grande capital, que, como tal, tem grande disponibilidade para financiar campanhas políticas e, assim, garantir apoio parlamentar seguro a seus interesses.

O PL 4.330 vem tramitando sob parca divulgação da grande mídia, malgrado seu potencial de impacto na sociedade. Isso num momento em que a velha e mal resolvida questão dos direitos sociais, da desigualdade social e da insatisfação que ela gera foi dramaticamente colocada em pauta pelas recentes manifestações de protesto em todo o país. Ou seja, apesar de você ter ido às ruas protestar por melhores condições de vida, o seu emprego corre perigo, e muita gente não quer que você saiba disso.

Rubens Goyatá Campante é doutor em sociologia e pesquisador do Núcleo de Pesquisas do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais (TRT/MG)

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