De perto, de longe

por João Paulo 02/11/2013 00:13
Espaço Comum Luiz Estrela/Reprodução
(foto: Espaço Comum Luiz Estrela/Reprodução)
Andamos tão preocupados com o tempo que estamos perdendo a noção de espaço. O que é perto e longe deixou de ser referência em razão de uma falsa anulação das distâncias: viajamos rápido, compartilhamos em tempo real experiências em vários cantos do mundo, temos a falsa ideia de habitar o coração do planeta.

Há algum tempo, quando as distâncias imperavam, havia uma espécie de hierarquia: o que importava, até mesmo por nossa capacidade de intervenção, era o que estava mais próximo. O gesto de liberdade era demarcado pelo arco formado por um homem com os braços abertos. Aquilo que dizia respeito aos contextos mais distantes tinha seu valor, mas era considerado com o peso dado pelo afastamento.

A proximidade não era uma condenação, mas destino. Como diziam os antigos filósofos existencialistas, somos nós e nossa circunstância. Por isso, quanto mais ligados ao nosso entorno, mais nos definimos como humanos. A proximidade nos humaniza. A dialética entre perto e longe, o balanço entre as duas situações se torna uma espécie de modo de ser no mundo. Somos contemporâneos do todo, mas conterrâneos do próximo.

Essa situação se apresenta a todo momento na vida das sociedades contemporâneas. Estamos perdendo o sentimento de vizinhança. Uma das consequências desse movimento é a diminuição do sentido de singularidade em troca da percepção que alguns chamam de globalizada. Em outros termos, cada parte do todo sacrifica o que tem de único em razão de uma falsa centralidade que atende apenas aos interesses de mercado.

São muitas as situações em que se percebe essa tendência. Na mais prosaica delas, a cobertura dos jogos de futebol pela TV, os torcedores locais precisam entregar sua paixão ao interesse do mercado patrocinador. Assim, jogos de São Paulo e Rio de Janeiro, quando não de Madri e Berlim, são mais importantes que a peleja de seu time do coração.

Pode parecer pouca coisa, mas é um sinal significativo de esvaziamento da diferença. O resultado a longo prazo, como se vê hoje com certa frequência, aponta para crianças que torcem para o Barcelona, quando não se alienam ainda mais usando camisas de times de basquete norte-americano e torcendo para um esporte que faz com a mão o que os pés realizam com astúcia no futebol.

A mesma realidade vivida com os esportes também se torna operacional no caso do jornalismo. Não deveria haver, até por definição, nada mais jornalístico que o fato local. Notícia é o que afeta a vida, o que nos permite tomar a melhor decisão. Se uma pessoa liga a televisão e se depara com um engarrafamento em São Paulo (todos parecem saber quantos quilômetros de paralisação SP registra nos dias de chuva), não vai se sentir mais bem aparelhada para se movimentar em Belo Horizonte.

Mais que o dado pragmático, o trânsito ruim em BH é diferente daquele de outras localidades e tem outras razões: incompetência de planejamento, viadutos que ligam dois engarrafamentos, falta de metrô, obras arrastadas e malfeitas. A saída política de Sampa será necessariamente diferente da nossa. Outra deverá ser também a mobilização.

O que trânsito e jogo de futebol têm em comum, nesse caso, é o fato de ganharem dimensão pública por um modelo de TV que deixa de lado a particularidade. Existe saída: a regionalização da programação de televisão. No entanto, como o debate sobre o tema entra sempre na pauta da regulação, acaba sendo vendida como intervenção no setor.

Os projetos de regionalização da produção televisiva patinam há muitos anos no Congresso. Há desde percentuais definidos e horários a serem reservados para programação local até o incentivo à produção desse tipo de programa. Como muitos parlamentares são concessionários de rádio e TV, o debate não avança.

O que se vê, para cumprir a cota hoje existente, é a venda de espaço para programação religiosa, que, independentemente da fé professada, é sempre muito ruim, preconceituosa, chata e alienante. Ou, o que é pior, programas políticos obrigatórios, que, além de contar ponto para a cota local com suas mentiras encadeadas por interesses eleitorais, dão isenção fiscal às emissoras.

Como se vê, torcer para o Barcelona ou ficar preocupado com o tráfego na Marginal Tietê é o menos pior da política concentracionista da comunicação no Brasil. Se de perto ninguém é normal, na TV brasileira de perto ninguém sequer existe.

Coletivos

Outra situação que denuncia a incapacidade da gestão da proximidade é perceptível no setor cultural de BH. Há anos se repetem as mesmas políticas, os mesmos critérios de alocação de recursos, a mesma incapacidade de avanço gerencial. A cidade vive empurrada por grandes festivais, que, em outro registro, parecem repetir a mesma lógica da exclusão da diferença. Como Sísifo, a cada jornada começa tudo de novo sem sequer o benefício da memória para lhes apaziguar os equívocos.

O que falta no setor público parece brotar nos novos artistas da cidade. Pode-se perceber uma saudável tendência política centrífuga, militante e em rede, que tem aproximado coletivos de vários estilos e motivações ideológicas. A mais recente novidade – que merece apoio e atenção – é o Espaço Comum Luiz Estrela.

Localizado em Santa Efigênia, num edifício sem função da Fundação Hospitalar de Minas Gerais, o espaço foi ocupado por artistas e ativistas, passando a oferecer programação cultural para a localidade. Fruto de iniciativa politicamente ordenada e inteligente, a ocupação conquistou a adesão da vizinhança, que percebe o potencial da arte para melhorar seu cotidiano.

A programação inclui aulas de artes orientais, ioga, dança, música, apresentações circenses e debates. As atividades começam com a manhã e se encerram à noitinha, sem atrapalhar o descanso dos cidadãos do bairro. O casarão, até então abandonado, terá gestão coletiva e será restaurado colaborativamente. Tudo é surpreendente na conquista do espaço, menos a reação do poder público, que se apressou a cobrar na Justiça a posse da qual se descurou por décadas.

Os ativistas da cultura em BH têm sabido habitar a cidade em sua valorização da proximidade: o carnaval que se pulveriza em bloquinhos; a ocupação dos espaços do Centro para as atividades que congregam a convivência entre as comunidades mais distantes (como no Duelo de MCs); a mobilização para a derrubada de cercas nas praças públicas.

Outra atitude que também recupera a dimensão de proximidade é o fortalecimento da participação dos segmentos cidadãos do Conselho Municipal de Cultura, que, postergado até o limite, vem ganhando força política e cobrando maior transparência na gestão e na definição da política cultural para o município. Os conselhos, com seu poder deliberativo, são instâncias que defendem a diminuição das distâncias.

Precisamos ficar mais perto dos bons. Em momentos difíceis, nada melhor do que achar a turma certa.


 jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br

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