Livro de ensaios estuda a constituição da noção de masculinidade na história do Brasil

Publicação ajuda a compreender a diversidade de papéis através dos tempos

por Ângela Faria 02/11/2013 00:13
Letícia Abras/Reprodução
(foto: Letícia Abras/Reprodução)
“Quantos homens cabem num só?”, perguntam Mary del Priore e Marcia Amantino na introdução do livro História dos homens no Brasil (Editora Unesp), que reúne ensaios sobre o processo de construção da masculinidade no país. Doze capítulos abordam da saga dos escravos à virilidade nas academias de MMA do século 21, passando pelo sinhozinho da casa-grande, por padres divididos entre celibato e pecado, por pobres rapazes caçados para lutar no Exército, por guerrilheiros inspirados no mito Che Guevara e por ativos militantes do movimento gay contemporâneo.

Dividido em 12 capítulos, o livro chega em boa hora: enquanto ruas são invadidas por alegres e afirmativas paradas GLTB, páginas policiais estampam crimes de motivação homofóbica e assassinatos de mulheres por machos enfurecidos. Algozes? Vítimas? Antes de tudo, personagens da história. A virilidade é uma construção cultural – e não mero dom da natureza –, lembra Angélica Müller em seu artigo, invertendo a famosa frase de Simone de Beauvoir: “Não se nasce homem, torna-se”.

Organizadoras do livro, Mary del Priore e Marcia Amantino prestam tributo ao sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, pioneiro no estudo do universo de sinhôs, doutores, escravos, matutos e caipiras. O Brasil e sua sociedade mestiça surgiram do corpo amedrontado dos negros, mas também da valentia de aguerridos quilombos. Não há como pensar em mestiçagem sem destacar os religiosos católicos amancebados com índias, negras e mulheres livres. A figura do padre don juan só perdeu prestígio no século 19, registra Robert Daibert Jr., especialista em ciências da religião.

No século 18, o Brasil experimentou sua primeira explosão demográfica. Provocada pelo Ciclo do Ouro, ela atingiu sobretudo o Centro-Sul, com profundo impacto sobre as relações familiares e as conexões entre os universos rural e urbano. Com a chegada da corte portuguesa, o século 19 foi emblemático para o homem brasileiro: ampliaram-se oportunidades de estudo, criaram-se colégios e se difundiram práticas corporais caras à virilidade. Há 300 anos, cariocas já se dedicavam à “política do corpo”: eram adeptos da cavalaria, do remo, da ginástica.

Marco da bravura nacional – os combates se davam corpo a corpo, é bom lembrar –, a Guerra do Paraguai foi fundamental para a reorganização das Forças Armadas brasileiras. Porém, o recrutamento forçado da tropa – leia-se, de pobres – só seria proibido em 1891, 21 anos depois do encerramento do conflito.

Sociedade patriarcal, o Brasil dos anos 1800 conferia ao pai poderes que nem a maioridade dos filhos (aos 25 anos) romperia, lembra Mary del Priore. Meninos se criavam entre o chicote (em casa) e a palmatória (na sala de aula). A pedagogia do castigo físico e o despotismo paternal regravam ricos e pobres. Entretanto, muitos desses núcleos familiares eram comandados por mulheres, sobretudo onde homens se viam obrigados a buscar o sustento longe de casa. Na São Paulo colonial, calcula-se que as matriarcas dirigiam 40% dos lares.

Tirano e amoroso

Del Priore lembra que a paternidade ganhou novos contornos no século 19. Dom Pedro I simbolizou essa mudança, explicitando em público o afeto aos filhos. “Passava-se do pai tirano ao pai amoroso”, observa a historiadora. De acordo com Gilberto Freyre, a transição da vida rural para a vida urbana levou consigo o patriarca. Mas o desmantelamento da imagem paterna autoritária se consolidou, mesmo, nos anos 1970/1980, com a profunda modificação das formas de casamento, o avanço das mulheres no mercado de trabalho e a revolução comportamental do século 20.

“Tudo colaborou para o fim de modelos tradicionais, embora muito do pater familiae subsista ao lado da figura do pai divorciado, homossexual, viúvo, adotivo ou ausente, enfim, de novas realidades para uma nova ordem social. A identidade dos pais será uma conquista a ser feita todos os dias”, acredita Mary del Priore. Leitura instigante, História dos homens... bem poderia ter mais dois capítulos, dedicados ao comportamento dos índios e ao mito de Lampião, o temido cangaceiro que sabia bordar.

Espelho

Especialista no estudo da indumentária, Márcia Pinna Raspanti escreveu um dos capítulos mais interessantes de História dos homens no Brasil. Nossos machos nunca foram indiferentes ao espelho – afinal, roupa é símbolo de poder. Calções de cetim, gibões, tecidos adamascados e acabamentos bordados, além do chapéu de lã, eram apreciados por senhores de nossa sociedade colonial, enquanto aos escravos proibia-se o uso de sapato. No Brasil império, ao austero dom Pedro II se contrapunha o fashion Joaquim Nabuco, com suas casacas compridas, coletes, bengalas e colarinhos engomados. Brasileiros copiavam os franceses, depois os ingleses e, mais recentemente, os americanos.

Aliás, nasceu em Minas um dos dândis mais chiques do século 20: Santos Dumont (1897 – 1932), o Pai da Aviação, com seus ternos risca de giz e sapatos de salto para despistar a pouca altura. Foi para ele que Louis Cartier criou o relógio de pulso, até hoje objeto de desejo de nossos vaidosos metrossexuais. O baixinho fez mesmo história – e não só a bordo do 14 Bis. Usava seu chapéu-panamá estrategicamente caído, de lado, chamando a atenção ao circular assim por Paris. A moda pegou. Winston Churchill e Harry Truman aderiram. Depois vieram Humphrey Bogart, Clark Gable e – last, but not least – Michael Jackson...

HISTÓRIA DOS HOMENS NO BRASIL

. Organizado por Mary del Priore e Marcia Amantino
. Editora Unesp, 415 páginas, R$ 69

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