Feira alemã destaca temas para reflexão acerca do mercado do livro e da importância do incentivo à leitura

Problemas já haviam sido identificados no mesmo fórum, há quase 20 anos

por 26/10/2013 00:13
Affonso Romano de Sant’Anna

 

Daniel Roland/AFP
(foto: Daniel Roland/AFP)
É positiva essa polêmica em torno da Feira de Frankfurt, que homenageou o Brasil e terminou no dia 13. O interesse (e suspeição) começou antes da realização do evento. Várias tolices foram ditas. Uma delas: que os 70 escritores não eram representativos. Representativos de quê, cara pálida? Como disse alguém, na delegação, realmente não havia paraplégicos e anões. Deveria ter sido pautada pela ideia de cotas?

Quanto à acusação (apressada) de que só havia um preto e um índio, lembrei-me daquela anedota: um embaixador americano dizia que a questão do racismo no Brasil era mentirosa. Havia racismo, sim. A prova é que não existia preto no Itamaraty. Ao que um embaixador brasileiro respondeu: “É verdade, no Itamaraty não tem preto, mas em compensação também não tem branco”. Como disse a Paulo Lins (Cidade de Deus), meu ex-aluno (que apresentaram como sendo o preto oficial), eu, por exemplo, também sou preto. E não abro mão. Para quem quer se informar sobre a questão, aconselho a procurar as pesquisas do geneticista Sérgio Pena.

 Outra tolice foi sobre a “gastança”, como se aqueles artistas fossem um bando de “marajás” a sugar o cofre da viúva. Quem assim pensou não entende de licitações, de organização de eventos e botou levianamente em dúvida o caráter de muita gente. E os que alegaram que outros poderiam ter sido convidados apenas repetiram o que ocorre toda vez que uma seleção é convocada. Cada um tem uma seleção na cabeça. Não dá para colocar todo mundo dentro do campo.

Vim como simples escritor a esse evento. Há uns 20 anos, em 1994, o Brasil foi pela primeira vez homenageado nessa feira. Era presidente da Fundação Biblioteca Nacional e junto com a Câmara Brasileira do Livro assumimos todos os riscos de tal empreitada, arrastando atrás de nós todo o governo. Como os ministros da Cultura duravam pouco em seus postos (passei por seis deles) e como passamos também por três presidentes, entendi que tinha que atuar no governo à revelia do próprio governo. No serviço público a roda é quadrada e a carruagem tem que andar. Hoje há estabilidade econômica e política. Naquele tempo vivia-se uma incerteza quântica, crônica e brasileira. Portanto, acho que tenho algo para falar sobre o antes, o durante e depois da Feira de Frankfurt.
    
A polêmica Além daqueles equívocos iniciais, outras questões mais relevantes surgiram nesta Feira de Frankfurt 2013. E elas afloraram já na cerimônia de abertura. Ao lado da fala técnica e conscienciosa dos alemães, três brasileiros mostraram (sem que tivessem combinado) três faces do Brasil. O discurso político e passional de Luiz Ruffato, expondo as mazelas do país; a fala moderada da presidente da Academia Brasileria de Letras, Ana Maria Machado; e a retórica antiga do vice-presidente Michel Temer. Ruffato foi aplaudido e Michel Temer ouviu rumores de vaia. Quando Ruffato deu aquelas estatísticas sobre a miséria brasileira, Ziraldo se levantou pedindo para as pessoas não aplaudirem Ruffato. E se retirou.

A feira começou, portanto, animada. Ziraldo depois teria um princípio de enfarte, Carlos Heitor Cony levou um tombo e voltou mais cedo ao Brasil e roubaram o celular de Lúcia Ryff. A internet do Holliday Inn não funcionava e faltou água em alguns quartos. Fora isso, os organizadores – alemães e brasileiros – saíram-se bem.

Ruffato se transformou em estrela do encontro, embora tenha dado entrevista dizendo que foi ameaçado, até fisicamente, por diversas pessoas. Outros escritores não gostaram de sua fala. Acharam-na passional, política e inapropriada. Alegaram que a função de Ruffato era representativa e ele se superpôs ao grupo. Falou mais por si e não pela variedade de escritores brasileiros.

No entanto, muitos se acharam representados por ele. E sua fala teve eco, sobretudo na imprensa alemã. Uma fala moderada não teria suscitado interesse. E aqui cabe a pergunta: por que esse tipo de fala interessa a alguns alemães e ao mercado do livro? E surge uma questão no subsolo de toda essa polêmica, que pode parecer bizarra, mas, como dizem os lusos, “tem piada”: quem ama mais o Brasil? Será que Ziraldo ama menos o Brasil que Ruffato? Ou melhor: quantas maneiras existem de amar (o Brasil)? Tornando a questão mais prosaica e provocadora: quem amava mais o Brasil, Darcy Ribeiro ou Golbery do Couto e Silva? Os generais que deram o golpe de 64 ou os guerrilheiros que contestaram o regime? Brasil não é uno e, quanto ao amor, sabemos todos, ama-se de todas as maneiras, até de maneira inapropriada. Cada um acha que é o melhor amante. E no entanto…

Narciso às avessas Na feira de 1994, portanto há uns 20 anos, houve uma mesa intitulada “O Brasil no imaginário europeu”. Dela, se bem lembro, participaram Darcy Ribeiro, Sérgio Rouanet e outros, brasileiros e alemães. O assunto é inesgotável e claro que tudo o que ocorreu em 2013 é um episódio novo dessa construção imaginária. O problema dos estereótipos é que eles são, de alguma forma, verdadeiros. Não podem ser simplesmente negados: samba, mulata, carnaval, favela e futebol são uma realidade. Fácil de exportar. Já vi feiras internacionais de literatura onde a Espanha mostrava Dom Quixote e o Brasil exibia suas mulatas. E o resto do Brasil? Onde fica Clarice Lispetor em tudo isto? (Por sinal, uma estrela presente e silenciosa em vários seminários em Frankfurt.)

O que alguns criticaram em Ruffato foi ele ter praticado a síndrome do Narciso às avessas, como foi definida por Nelson Rodrigues. Dizia o sarcástico dramaturgo que o brasileiro gosta de cuspir na própria imagem. Isso não é exclusividade brasileira. Já dizia Salomão: “O que ama repreende”. E Ruffato, que admiro como escritor, me disse que ama o Brasil. Ziraldo ama o Brasil, Ana Maria Machado ama o Brasil e, acredito, Michel Temer ama o Brasil.

Portanto, há formas diversas de amar, muitos Brasis e muitos e diversos escritores. Por exemplo, acho que a representante da Finlândia foi infeliz na cerimônia de transmissão de homenagens, ao lembrar que a Finlândia foi ocupada pela Alemanha nas guerras recentes. Não era mentira, era de mau gosto e desnecessário. Imaginem se todo alemão começasse sua conversa sempre se desculpando por Auschwitz…

Nessa feira, o Brasil quis se afastar dos estereótipos. Procurou ser mais moderno. Há quem ache isso uma redução paulista. O Brasil (felizmente ou infelizmente) não é São Paulo. E a literatura brasileira não é só literatura. Aliás, o que é literatura?

Em 1994, muita gente se queixou da presença de Chico Buarque. Alegavam que era uma concorrência desleal. Agora surgiu a polêmica em torno de Paulo Coelho. Ao contrário do que ele diz, fez parte da delegação oficial. Que tipo de escritor é ele? A entrevista que deu à imprensa alemã foi mal recebida, até por seus colegas da Academia Brasileira de Letras. Ele não deveria ter exigido um tratamento especial. Imaginem como teria sido interessante se tivesse interagido, por exemplo, com Ferrez num debate sobre periferia e marginalidade. Ferrez, como Paulo Coelho, cada um na sua performance, pertence a outro nicho da cultura.

Características A feira de Frankfurt teve características específicas que devem ser destacadas caso se queira entender o conjunto:
a) O tema dominante era o mercado alemão. Com isso, quem não tinha livro traduzido para o alemão ficou em segundo plano. Além do mais, a escolha dos oradores oficiais (Luiz Ruffato no início e Paulo Lins no fim) não foi ingênua;

b) Embora tivesse representantes de vários gêneros, a feira deu ênfase a um tema dominante na mídia: a periferia e a marginalidade. Daí o interesse em torno de Ferrez, oriundo das favelas paulistas (Capão Redondo), de Paulo Lins (que veio da favela carioca de Cidade de Deus) e do escritor índio Daniel Mundukuru;

c) Foi uma feira com uma ênfase paulista e o curador da parte literária foi o paciente Manuel da Costa Pinto. Acresce que várias editoras, revistas e jornais de influência nacional encontram-se em São Paulo;

d) Houve ênfase nos novos, naqueles que surgiram, digamos, dos anos 1990 em diante. Mesmo sendo autores com poucos livros e jovens, foram expostos e vendidos. Esses escritores deram muitas entrevistas, conversaram com agentes, fecharam não sei quantos contratos e alguns faziam périplo por vários países;

e) Havia também escritores seniores. Alguns estiveram na feira de 1994, momento de reconhecimento internacional dos que se firmaram a partir dos anos 1970;

f) Os escritores jovens se beneficiaram dos projetos de tradução literária criados pela Fundação Biblioteca Nacional na minha administração, que foram ampliados por Galeno Amorim. Esse fomento de internacionalização começou com os encontros sistemáticos de agentes literários estrangeiros no Brasil e outras iniciativas da época em que o Departamento Nacional do Livro era dirigido pro Márcio Souza. Ou seja, a internacionalização de agora começou há 20 anos;

g) Em outros termos, como disse Renato Lessa, atual presidente da Fundação Biblioteca Nacional, essa geração de novos escritores, com tanta liberdade de expressão, é beneficiária também daqueles que foram torturados e exilados nos anos de chumbo. A liberdade custa caro.

Analfabetismo e leitura Na apresentação da Finlândia como sucessora do Brasil na feira, impressionou-me o fato de afirmarem que aquele é um país 100% alfabetizado. Ao lado estava o Paulo Lins, que entregava à escritora finlandesa o bastão. Contraste cultural. Um músico brasileiro que mora na Finlândia me disse que lá o único problema é que não há problemas, pois o governo resolve todos os problemas do cidadão.

Não somos um país de leitores. Nisto a ansiedade e indignação de Luiz Ruffato é legítima. Somos exilados dentro do próprio Brasil. É muito difícil repetir a façanha de Jorge Amado e Erico Verissimo. Em 1994, na Feira de Frankfurt, participei de uma mesa-redonda sobre projetos de leitura. Havia entusiasmo e curiosidade em torno do Proler da Fundação Biblioteca Nacional. Ocupávamos uma liderança na América Latina e tanto a Alemanha quanto Israel queriam desenvolver com o Brasil novas estratégias de política de leitura.

Agora, em 2013, houve outra sessão na Feira de Frankfurt sobre leitura. Participei ao lado de José Castilho, que opera o Plano Nacional do Livro e da Leitura. E pontuei que a leitura só virou preocupação nacional a partir do Proler dentro da Biblioteca Nacional. Antes disso, nunca se havia pensado numa política nacional de leitura. Pensava-se em editora, pensava-se em biblioteca, pensava-se em alfabetização e a palavra leitura estava embutida, era uma abstração. Pois é preciso dar visibilidade à palavra leitura. Há pouco, dois importantes editores brasileiros disseram que o Brasil editava livros demais, que as livrarias não sabiam o que fazer. Equívoco. O Brasil não produz livros demais, produz leitores de menos.

A Feira de Frankfurt é um louvável esforço em torno do mercado do livro.

Algum país, talvez a Finlândia, talvez o Brasil, poderia fazer uma Feira Mundial da Leitura. É preciso ir além do mercado. A literatura sempre fez isso.

Affonso Romano de Sant’Anna é escritor.

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