Educação para quase todos

por João Paulo 26/10/2013 00:13
Armed Nimani/AFP
(foto: Armed Nimani/AFP)
A história de duas meninas, vítimas da intolerância, chamou a atenção do mundo nas últimas semanas. A primeira delas é Malala Yousafzai, a jovem paquistanesa que se tornou um símbolo na luta pelo direito à educação. A história de Malala, que foi recebida na ONU e por autoridades de todo o mundo, é bela, corajosa e exemplar. Depois que o Talibã tomou conta do vale do Swat, no Paquistão, e com sua ideologia impediu que as meninas frequentassem a escola, Malala levantou sua voz contra o silêncio imposto e passou a se bater pelo direito à educação.


Quase pagou com a vida por sua atitude. A jovem foi baleada na cabeça com um tiro à queima-roupa, dentro do ônibus que a trazia da escola. A recuperação física e a força moral que fizeram dela exemplo para todas as jovens que desejam estudar foram contadas em livro, escrito em parceria com a jornalista Christina Lamb, que correu o mundo e vem emocionando todos que o leem. Muito mais que uma história individual de brio e reconstrução, é uma defesa do direito de ser uma pessoa humana plena, em todos os contextos e circunstâncias.

Malala vive hoje com a família na Inglaterra. Ela é militantes da causa da educação em comunidades de todo o mundo e sua voz é escutada pelos principais líderes mundiais. Suas palavras na ONU no ano passado, em Nova York, quando tinha 16 anos, são um testemunho de sua visão de mundo: “Esta é a sua chance, Malala, eu disse a mim mesma. Havia apenas 400 pessoas sentadas ao meu redor, mas quando olhei, imaginei muitos milhões. Não escrevi o discurso tendo na cabeça só os delegados da ONU; escrevi para cada pessoa no mundo todo que pudesse fazer alguma diferença. Queria alcançar todas as pessoas vivendo na miséria, aquelas crianças forçadas a trabalhar, que sofrem terrorismo e falta de educação”.

Outra jovem que também ganhou o noticiário por motivos semelhantes foi Leonarda Dibrani. Italiana de nascimento, de origem cigana e de família kosovar, ela não morava em país governado por uma ditadura obscurantista, mas na iluminista e orgulhosa França; não foi baleada na cabeça, mas foi igualmente retirada de um ônibus escolar, à força, e expulsa do país junto com a família. Nos dois casos, no Paquistão e na França, a alegação é semelhante: elas descumpriam a lei – seja religiosa ou civil – e não mereciam tratamento semelhante às demais pessoas: Malala por ser mulher, Leonarda por ser estrangeira. Na base das duas violências estava a mesma recusa à educação e a mesma atitude desumana de discriminação.

No caso da França, a mobilização dos estudantes em favor da colega levou o governo de François Hollande a voltar atrás e oferecer à jovem o retorno ao país para que ela completasse sua educação, mas sem a família, que foi expulsa para o Kosovo com a garota. Um reconhecimento canhestro do erro, uma reafirmação do preconceito em nome da lei de imigração e uma oferta que atenta contra os mais básicos valores da convivência humana – o direito de viver com a própria família. A direita protestou, julgou que o presidente demonstrava fraqueza e pediu a manutenção da expulsão de toda a família, chegando a contestar a legitimidade de Hollande para exercer a presidência. Não bastasse a leniência do presidente, parte da sociedade ainda exigia maior radicalização no processo de exclusão social da jovem e de sua família. Para os paquistaneses, as jovens mulheres não têm direito à educação; para os civilizados franceses, todos os jovens, homens e mulheres, devem ser excluídos em razão de sua origem étnica.

Por trás da situação francesa está uma pesada carga de preconceito racial que vem varrendo a Europa, que tem chamado a atenção sempre por razões dramáticas: assassinatos motivados por ódio racial, mortes em travessias clandestinas em direção ao continente, fortalecimento dos partidos com bandeiras racistas e xenófobas, receituário recessivo aos países em crise para acesso ao crédito. A virada conservadora não é perigosa em si, mas pelo que aponta de restrição aos direitos. É possível conviver com governos de direita e de esquerda, democraticamente, desde que não se insurjam contra bandeiras universalistas, como a dos direitos humanos. A ameaça não é de fortalecimento da direita, mas da exclusão humanitária.

Discriminação Na França e em outros países da Europa não está ausente o forte sentimento de discriminação social, por questões religiosas, étnicas ou políticas. Ele atinge os negros, os árabes e os ciganos, entre outros. É comum, entre brasileiros descendentes de europeus, a busca pela cidadania de seus antepassados, para que, com isso, possam ingressar no continente pela porta da frente. Trata-se de um expediente ilegítimo e imoral – as pessoas fazem parte da humanidade, não dessa ou daquela nação – e muitas vezes puramente pragmático, já que não há qualquer identificação cultural com o país dos antepassados (poucos até mesmo falam o idioma dos avós). Além disso, a lógica da pertinência parece apenas reforçar o princípio da exclusão.

No caso de Leonarda, nem essa situação foi suficiente. Sempre que é citada na imprensa e nos pronunciamentos oficiais ela é nomeada como cigana e kosovar, como se seu nascimento italiano (portanto nos limites da União Europeia) não superasse a mácula de seu povo errante, que vem sendo atacado por discriminação há séculos; ou do país de seus antepassados, sempre atravessado por conflitos étnicos. Tudo que em Malala é coragem, em Leonarda é visto como oportunismo. O mundo defende a educação para todos, mas nem todos os seres humanos parecem fazer parte do todo. Malala, para os “civilizados”, é uma nítida exceção e fruto de comportamentos bárbaros aos quais é lícito e justo se opor. Já Leonarda, apenas uma excluída entre outras, que ameaçaria com sua simples presença a falsa igualdade cercada de barreiras dos países de Primeiro Mundo. Ela não se enquadra no papel de vítima, mas de postulante ilegítima a um lugar que não é seu.

A situação das duas jovens é exemplar. Defendemos a educação sempre da boca para fora. Acreditamos em Malalas, jovens excepcionais, figuras humanas excelentes e que dignificam a humanidade com seu exemplo. Mas nos comportamos como se as jovens fossem Leonardas, até prova em contrário incapazes de progredir em suas vidas por meio da educação, destinadas inevitavelmente a fracassar. Todos querem Malala em suas escolas, mas poucos querem lutar para incorporar no processo educativo uma jovem que desafia os consensos e aponta nossa incapacidade de fazer cumprir a tarefa básica da educação: tornar as pessoas mais pessoas. O processo educacional é sempre qualitativo. Quem deseja quantidade é o mercado. Educar é uma coisa, treinar é outra.

Por isso as greves no setor educacional desafiam tanto os governos. Os professores, em nome dos alunos, proferem o discurso da qualidade; os administradores argumentam com noções de quantidade. Para os professores o aumento salarial carrega a potência de revolucionar o ensino; para os gestores é um complicador a mais no orçamento. Para os educadores a escola que temos é o retrato do país que haveremos de ter; para os governos é uma questão de gasto, nunca de investimento. O tratamento da recente greve dos professores no Brasil foi uma aula de selvageria (até mesmo com teste de sprays gigantes de pimenta), nunca uma lição de diálogo e negociação.

As duas jovens que lutam pela educação e pelo alargamento da noção de humanidade mostram os limites de nossa condescendência: somos generosos com as Malalas (afinal elas são vítimas de bárbaros) e inflexíveis com as Leonardas (que no fundo querem pertencer a um mundo que não é delas). A atitude dos jovens franceses que denunciaram ao mundo a expulsão da colega e o infeliz oferecimento de seu presidente em separar a jovem da família honra a tradição de seu país. E mostra que a revolução não é um momento na vida da sociedade, mas um processo que precisa ser alimentado continuamente de indignação.

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