O colaborador e o explorado

por 28/09/2013 00:13
Marcos Michelin/EM/D.A Press
Marcos Michelin/EM/D.A Press (foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press)
João Paulo


Tem muita gente parada. É só olhar em volta para ver os professores acampados na porta do Palácio das Mangabeiras reivindicando investimento devido à educação, melhores salários e condições de trabalho adequadas. Quem precisa pagar contas em bancos oficiais também tem encontrado portas fechadas, ao mesmo tempo que vem acompanhando publicidade dos ganhos das instituições financeiras públicas. Se procurar os correios, também vai ficar sem serviços. Se for à Assembleia Legislativa, vai se deparar com policiais civis em barracas de campanha. Até os jogadores de futebol estão se organizando para exigir condições mais humanas de trabalho. As greves em vários setores estão mostrando que a contradição entre capital e trabalho não deixou de existir com a destruição orquestrada pelo pensamento conservador da bússola ideológica que organizava o mundo em esquerda e direita. Só quem é de direita nega a existência da esquerda.

s greves não devem ser tratadas de forma única, já que há diferentes graus de motivação e de acúmulo de organização entre os trabalhadores. No caso da educação em Minas, por exemplo, ao acenar com o aumento de 5%, o governo sabe que é pouco, reconhece a defasagem salarial com outras categorias com o mesmo grau de formação, confessa se preocupar com o abandono da carreira por milhares de professores a cada mês (pode haver maior signo de derrota de civilização do que este?) e promete recomposição (o que é uma confissão da insuficiência da proposta) a longo prazo.

No entanto, na prática, essa fieira de confissões tem se mostrado cabotina. Em primeiro lugar, há um desvio semântico que, para driblar as exigências constitucionais, muda o nome de salário para subsídio, de modo a atender as exigências da lei e fraudar o professor em seus direitos de ter seu piso definido pelo vencimento básico. O Estado não paga o que deve e gasta em publicidade para dizer que paga mais do que pode. Além da dívida, que se acumula aos bilhões, há sempre o discurso de que o impacto nos gastos com aumentos salariais de professores retiraria do Estado a capacidade de pôr recursos em outros setores sociais, ficando a promessa para os futuros ganhos com o pré-sal ou demais graças da natureza, nunca da ação de homens sérios. Em outras palavras, os professores são responsabilizados pela incompetência do Estado em arrecadar com justiça, controlar gastos com diligência e distribuir renda de forma democrática em serviços de qualidade (educação entre eles).

Curiosamente, trata-se do mesmo governo que divulga sua trajetória em termos de crescimento de receita com cenário atrativo para o capital investidor externo, austeridade administrativa e corte de gastos com políticas modernas de gestão, e resultados qualitativos em sua política educacional (“campeão em matemática”, sabe-se lá o que isso significa na construção pedagógica de uma sociedade que precisa ser solidária, não competitiva desde a infância). Assim, a mobilização do setor educacional tem demonstrado a falência de um pacto entre trabalhadores e governo. O acampamento em frente ao palácio é mais que uma situação de fato: é uma metáfora dura do que significam os dois setores para a sociedade, que universos habitam, que espaço ocupam. O castelo e a choupana.

Essa separação entre patrões e empregados, que de resto não é nova, tem sido questionada e, para muitos, aponta para um cenário ultrapassado, devendo ser superada pela capacidade de integrar os interesses sociais de forma universal e unívoca. Nesse contexto, a saúde financeira do setor produtivo seria a garantia para todos, inclusive para os trabalhadores. Não é um acaso que estes deixem até mesmo de ser tratados como empregados para ganhar o uniforme compassivo de colaboradores. Há uma falsa identidade entre o que querem os trabalhadores e os patrões. A greve parece ser hoje o último reduto de verdade moral.
Além da ideologia, que busca nivelar as diferenças a meros percalços, é preciso ficar atento à construção do imaginário da unidade de propósitos no campo do trabalho, sob o risco de ameaça grave aos resultados do patrimônio de luta do cidadão brasileiro. Não é um acaso que as greves sejam subnotificadas pela imprensa, nem mesmo que sejam quase sempre seguidas do eterno retorno do mesmo: o questionamento da necessidade dos direitos trabalhistas, que seriam superados por livre pactuação. A todo momento surgem propostas para desregulamentar o setor, retirar conquistas, impedir manifestações livres, estancar a ampliação de direitos – uma democracia só é saudável quando amplia os direitos, não apenas quando os mantém. Não é também acaso que essas medidas sejam qualificadas de “modernas”, mesmo quando, explicitamente, apontem para a redução de direitos. No terreno orwelliano da política e das relações de trabalho, a linguagem é sempre a primeira a sofrer baixas.

Superego A política ajuda a entender melhor o mundo social, mas não dá conta de tudo. Por vezes é preciso um pouco de arte e até de psicologia. No terreno da música, por exemplo, o que vimos no recente Rock in Rio foi uma regressão completa do potencial crítico da mais rebelde manifestação artística do século 20, o rock, a padrões de mercado e prazer individualista. A arte que ajudou a mudar o cenário político do mundo a partir da juventude se revelou um pastiche de si mesma, num parque de diversões temático com direito a “brinquedos” e falsos cenários criados para vender bugigangas. Que o melhor show tenha sido de um artista identificado com a classe trabalhadora, Bruce Springsteen, não é um sinal de falta de renovação, mas talvez de memória social latente. Está faltando rock no rock.

Esse sinal de alerta de descompasso com nosso próprio tempo talvez explique muita coisa. Parece que passamos de um estágio a outro do superego freudiano. Para o criador da psicanálise, em plena era da produção capitalista, o papel do superego era barrar o acesso ao prazer em nome de outros ideais de civilização. Hoje, na era do consumo, o superego parece um açoite em direção ao gozo. Nada de adiamento: a vida é agora, o prazer é sempre individual, o futuro é uma hipótese e o outro se configura como uma ferramenta ou um empecilho ao meu prazer instantâneo. E, é claro, frustração na mesma medida.

Para o filósofo esloveno Slavoj Zizek, o supereu pós-moderno não apenas ordena o gozo como receita que o prazer se dê naquilo que é mera obrigação, como o trabalho, por exemplo. Temos que gozar a todo momento, mesmo naquilo que carrega sua cota de sacrifício. Aceitar que se é usado como uma peça, para o sujeito contemporâneo, é uma confissão de fracasso psicológico: é melhor ser colaborador que explorado, ainda que a colaboração seja apenas mais uma arma eficiente de submissão social.

O homem pós-moderno, habitado por um superego que não cansa de instigar ao gozo, tem o dever de sentir prazer. Como o indivíduo é igualmente covarde para querer o que deseja, ele passa a amaciar seus riscos com prazeres vicários: café sem cafeína, cigarro sem nicotina, sexo sem sexo, política sem participação, sindicalismo de resultados. Os dois lados se dão as mãos: a vida orientada para o consumo se torna base para o esvaziamento do potencial social de rebeldia. Cada um que cuide de seu prazer e de sua vida.

A consequência desse pacto de retirada da vida social tem implicações, às quais, muitas vezes, deixamos de lado em nome de interesses pessoais ou mera compulsão ao prazer. Por isso os moradores de rua só afetam a sociedade quando ameaçam sua paz; o risco do desemprego é sempre um problema do outro (o que leva a posturas de desmobilização e covardia); a falta de médicos é uma questão burocrática de licenças e não a explicitação da falência de um modelo de atenção individualista, concentrador e intensivo em tecnologia; a contenção das manifestações públicas deve ser feita pelo modelo repressivo e criminalizador dos movimentos sociais; a depressão é sempre sinal de fracasso do corpo que pode ser corrigido com comprimidos.

As greves estão de volta para ensinar que, mesmo numa sociedade de redes que se desfazem como fumaça e se criam como metástases, as formas de solidariedade social precisam cumprir o duro e exigente caminho coletivo de pensar, formular e agir em conjunto. Num tempo em que até o superego obriga ao gozo individual e neurotizante (porque impossível), a grande revolução é a descoberta do outro, o encontro com “nossa turma”. Junto é sempre muito melhor.

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