Sobre antioxidantes ideológicos

Que, apresentando ao leitor impetuoso o conteúdo do livro, explica por que o totalitarismo é e foi, desde os seus primórdios, um tapa-buraco

por 28/09/2013 00:13
Wikipedia Commons/Reprodução
Wikipedia Commons/Reprodução (foto: Wikipedia Commons/Reprodução)
Slavoj Zizek



Na embalagem do chá-verde Celestial Seasonings há uma breve explicação de seus benefícios: “O chá-verde é uma fonte natural de antioxidantes que neutralizam os radicais livres, moléculas nocivas ao nosso corpo. Controlando os radicais livres, os antioxidantes ajudam o corpo a manter a saúde”. Mutatis mutandis, a noção de totalitarismo não é um dos principais antioxidantes ideológicos, cuja função durante toda a sua existência foi controlar os radicais livres e, assim, ajudar o corpo social a manter sua saúde político-ideológica?

Não menos que a própria vida social, a academia que hoje se declara “radical” é permeada de regras e proibições tácitas – ainda que nunca sejam explicitadas, transgredi-las pode ter consequências terríveis. Uma dessas regras diz respeito à onipresença inquestionada da necessidade de “contextualizar” ou “situar” uma posição: a única maneira de se dar bem em um debate é dizer que a posição do oponente não está propriamente “situada” em um contexto histórico: “Você fala das mulheres, mas de quais mulheres? Não existe mulher como tal, portanto seu discurso generalizado sobre as mulheres, em sua aparente neutralidade oniabrangente, não privilegia figuras específicas da feminilidade e exclui outras?”.

Por que essa historicização radical é falsa, apesar do óbvio momento de verdade que contém? Porque a própria realidade social (mercado capitalista global tardio) de hoje é dominada pelo que Marx chamou de poder da “abstração real”: a circulação do capital é a força de “desterritorialização” radical (para usar o termo de Deleuze) que, em seu próprio funcionamento, ignora ativamente as condições específicas e não pode ser “enraizada” nelas. Não é mais a universalidade que obstrui a virada de sua parcialidade, de seu favorecimento de um conteúdo particular, como acontece na ideologia-padrão; ao contrário, é a própria tentativa de localizar raízes particulares que obstrui ideologicamente a realidade social do reino da “abstração real”.

Outra dessas regras foi a elevação de Hannah Arendt a autoridade intocável, ou seja, a referência. Duas décadas atrás, os esquerdistas radicais a descartavam como perpetradora da noção de “totalitarismo”, a principal arma do Ocidente na luta ideológica da Guerra Fria: nos anos 1970, se alguém nos perguntasse inocentemente em um colóquio de estudos culturais se nossa linha de argumentação era parecida com a de Arendt, esse era um sinal nítido de que estávamos com sérios problemas. Hoje, no entanto, espera-se que ela seja tratada com respeito – até mesmo acadêmicos cuja orientação básica poderia jogá-los contra Arendt (psicanalistas como Julia Kristeva, por causa da rejeição de Arendt à teoria psicanalítica; adeptos da Escola de Frankfurt, como Richard Bernstein, por causa da excessiva animosidade de Arendt contra Adorno) abraçaram a impossível tarefa de conciliar Arendt e seu compromisso teórico fundamental. Essa exaltação de Arendt talvez seja o sinal mais claro da derrota teórica da esquerda – o fato de a esquerda ter aceitado as coordenadas básicas da democracia liberal (“democracia” versus “totalitarismo” etc.) e agora estar tentando redefinir sua (o)posição dentro desse espaço. A primeira coisa que devemos fazer, portanto, é quebrar sem temor esses tabus liberais: E daí se formos acusados de “antidemocráticos”, “totalitários”...

Em toda a sua existência, o “totalitarismo” foi uma noção ideológica que amparou a complexa operação de “controle dos radicais livres”, de garantia da hegemonia liberal-democrática, descartando a crítica esquerdista da democracia liberal como o anverso, o “gêmeo” da ditadura fascista de direita. E é inútil tentar salvar o “totalitarismo” dividindo-o em subcategorias (enfatizando a diferença entre a variedade fascista e a comunista): no momento em que aceitamos a noção de “totalitarismo”, entramos firmemente no horizonte liberal-democrático. O argumento deste livro, portanto, é que a noção de “totalitarismo”, longe de ser um conceito teórico efetivo, é um tipo de tapa-buraco: em vez de possibilitar nosso pensamento, forçando-nos a adquirir uma nova visão sobre a realidade histórica que ela descreve, ela nos desobriga de pensar, ou nos impede ativamente de pensar.

Hoje, a referência à ameaça “totalitarista” sustenta um tipo de Denkverbot (proibição ao pensamento) tácito, algo semelhante ao infame Berufsverbot (proibição de ser empregado por qualquer instituição estatal) do fim da década de 1960 na Alemanha – se o sujeito demonstra uma mínima inclinação a se envolver em projetos políticos que visam desafiar seriamente a ordem existente, a resposta imediata é: “Por mais benévolo que seja, isso vai levar necessariamente a um novo gulag!”. O “retorno à ética” na filosofia política atual explora vergonhosamente os horrores do gulag ou do Holocausto como espectro definitivo para nos fazer renunciar a qualquer engajamento radical sério. Desse modo, os salafrários liberais conformistas podem encontrar uma satisfação hipócrita na defesa da ordem existente: eles sabem que existe corrupção, exploração etc., mas cada tentativa de mudar as coisas é considerada eticamente perigosa e inaceitável, porque ressuscita o fantasma do “totalitarismo”.

Este livro não visa fornecer mais uma exploração sistemática da história da noção de totalitarismo. Antes, ele tenta seguir o movimento dialético que vai de um conteúdo particular da noção universal a outro, o movimento constitutivo do que Hegel chamou de “universalidade concreta”. Em Por que as mulheres escrevem mais cartas do que enviam?, Darian Leader afirma que, quando uma mulher diz “eu te amo” para um homem, no fundo ela quer dizer uma destas três coisas:

. Tenho um amante (como em: “Sim, tenho um caso com ele, mas isso não significa nada, eu ainda te amo!”).

. Sinto-me entediada com você (como em: “Sim, eu te amo, está tudo bem, mas, por favor, me deixe um pouco sozinha, preciso de um pouco de paz!”).

. E, por fim, um simples eu quero sexo!

Esses três significados estão interconectados como os termos de uma cadeia de raciocínio: “Arrumei um amante porque me sinto entediada com você; portanto, se quer que eu te ame, me ofereça sexo de melhor qualidade!”. Nessa mesma linha, quando – hoje, depois dos disparates liberais da Guerra Fria contra o stalinismo como resultado direto e necessário do marxismo – os teóricos usam o termo “totalitarismo” aprobativamente, eles estão assumindo uma destas cinco posições:

. O “totalitarismo” é o modernismo enviesando-se: ele preenche a lacuna aberta pela própria dissolução modernista de todos os vínculos sociais orgânicos tradicionais. Os conservadores tradicionalistas e os pós-modernistas compartilham essa noção – a diferença entre eles é sobretudo uma questão de ênfase: para alguns, o totalitarismo é o resultado necessário do esclarecimento modernista, inscrito em sua própria noção; para outros, é mais uma ameaça que se consuma quando o esclarecimento não realiza totalmente seu potencial.

. O Holocausto como crime máximo e absoluto, que não pode ser examinado nos termos da análise política concreta, pois tal abordagem já o banaliza.

. A alegação neoliberal de que qualquer projeto político de emancipação radical resulta necessariamente em uma versão qualquer de controle e dominação totalitária. Desse modo, o liberalismo consegue unir novos fundamentalismos éticos e (o que quer que reste dos) projetos emancipatórios da esquerda radical, como se os dois estivessem de alguma maneira “profundamente relacionados”, como se fossem dois lados da mesma moeda, ambos voltados para o “controle total”... (Essa combinação é a nova forma da velha ideia liberal de que o fascismo e o comunismo são duas formas da mesma degeneração “totalitária” da democracia.)

. A afirmação pós-moderna atual (já prenunciada em Dialética do esclarecimento* por Adorno e Horkheimer) de que o totalitarismo político é fundamentado no fechamento metafísico falologocêntrico: a única maneira de evitar consequências totalitárias é insistir na lacuna radical, na abertura, no deslocamento, que jamais pode ser encerrada dentro de um edifício ontológico aberto.

. Por fim, numa reação cognitivista recente, os próprios estudos culturais pós-modernos são tachados de “totalitários”, como a última ilha em que sobreviveu a lógica stalinista de obediência incondicional à diretiva do partido, impermeável a qualquer argumentação racional.

É interessante notar aqui que até mesmo a resposta filosófica “crítica” dominante ao liberalismo hegemônico, a da esquerda desconstrucionista pós-moderna, baseia-se na categoria do “totalitarismo”. A doxa política desconstrucionista é mais ou menos esta: o social é o campo da indecidibilidade estrutural, é marcado por uma falta ou lacuna irredutível, está condenado para sempre à não identidade com ele mesmo; e o “totalitarismo” é, em sua forma mais elementar, o fechamento dessa indecidibilidade – a esquerda pós-moderna não estão reformulando aqui, em seu próprio jargão, a antiga sabedoria liberal de Isaiah Berlin, Robert Conquest e companhia? O totalitarismo é elevado, portanto, ao nível da confusão ontológica; é concebido como um tipo de paralogismo kantiano da pura razão política, uma “ilusão transcendental” inevitável que ocorre quando uma ordem política positiva é diretamente identificada em um curto-circuito ilegítimo, com a impossível alteridade da justiça – qualquer posicionamento que não endosse o mantra da contingência/deslocamento/finitude é considerado potencialmente “totalitário”.

A noção filosófica de totalidade e a noção política de totalitarismo tendem a se sobrepor aqui, em uma linha direta que vai de Karl Popper a Jean-François Lyotard: a totalidade hegeliana da Razão é percebida como o edifício totalitário definitivo na filosofia. A racionalidade como tal tem uma péssima reputação hoje em dia: os defensores da Nova Era a condenam como um pensamento cartesiano mecanicista/discursivo que vem “do lado esquerdo do cérebro”; as feministas a rejeitam como uma posição baseada no masculino, que acredita implicitamente em sua oposição à emotividade feminina; para os pós-modernistas, a racionalidade envolve a pretensão metafísica à “objetividade”, que oblitera os mecanismos de poder e discurso que determinam o que interessa como “racional” e “objetivo”… É em oposição a esse irracionalismo pseudoesquerdista que devemos nos lembrar do subtítulo de “A instância da letra no inconsciente”, de Lacan: “ou la raison depuis Freud” – ou a razão desde Freud.

Em 1991, depois do golpe contra Ceausescu preparado pela própria nomenklatura, o aparato da polícia secreta romena continuou ativo, é claro, cuidando normalmente de suas atividades. No entanto, o esforço da polícia secreta para projetar uma imagem nova e mais amigável de si mesma, em consonância com os novos tempos “democráticos”, levou a alguns episódios estranhos. Um amigo norte-americano, que na época estava em Bucareste com uma bolsa do Fulbright, telefonou para casa uma semana depois de chegar e disse à namorada que agora estava em um país pobre, porém amistoso, onde as pessoas eram agradáveis e com disposição para aprender. Assim que desligou, o telefone tocou; ele atendeu e alguém se apresentou, num inglês levemente confuso, como o oficial da polícia secreta encarregado de ouvir sua conversa telefônica, dizendo que gostaria de agradecer as coisas amáveis que ele havia dito sobre a Romênia – depois lhe desejou uma boa estada e se despediu.

Este livro é dedicado a esse agente anônimo da polícia secreta romena.

. Texto escrito por Slavoj Zizek como introdução ao seu novo livro, Alguém disse totalitarismo: cinco intervenções no (mau) uso de uma noção, que será lançado em outubro pela Editora Boitempo


O autor

Slavoj Zizek nasceu em 1949 na cidade de Liubliana, Eslovênia. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por várias áreas do conhecimento e tem como principais referências teóricas Karl Marx e Jacques Lacan, sendo autor de uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade, em que mescla conhecimentos profundos de filosofia, sociologia e psicanálise com elementos da cultura pop e do cinema.

É professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana e diretor internacional da Universidade Birkbeck de Londres. Entre suas obras traduzidas no Brasil estão Mais sublime dos histéricos: Hegel com Lacan (1996), Bem-vindo ao deserto do real (2003), Visão em paralaxe (2008), Como ler Lacan (2010), Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia e depois como farsa (ambos de 2011), O ano que sonhamos perigosamente (2012) e Menos que nada: Hegel à sombra do materialismo dialético (2013).

Alguém disse totalitarismo: cinco intervenções no (mau) uso de uma noção
. De Slavoj Zizek, tradução de Rogério Bettoni
. Editora Boitempo, 184 páginas, R$ 39


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