'Guia morador' revela uma BH feita do afeto

Organizado pelos arquitetos Fernanda Regaldo e Roberto Andrés, publicação mostra o que não cabe no discurso oficial nem nos almanaques destinados aos turistas

por João Paulo 21/09/2013 09:00
Luís Delfino/Reprodução
Lucas Delfino retrata a ampla paleta de cores e informações dos shoppings populares de Belo Horizonte: territórios da diversidade (foto: Luís Delfino/Reprodução)
Prepare-se para conhecer Belo Horizonte. Não a cidade oficial, muito menos aquela aprisionada nos guias de turismo convencionais, que parecem sempre repisar o mesmo, como se cada lugar fosse tradução de um índice invariável de lugares “interessantes”, que apenas mudam de endereço. O Guia morador Belo Horizonte apresenta o mapa de um território de afetos, habitado por outras histórias e protagonista de narrativas em plena vitalidade.

O livro será lançado amanhã, dentro da marca política do Dia Mundial sem Carro, na região do Viaduto Santa Tereza, em frente à sede do Espanca!. É trabalho coletivo, coordenado pelos arquitetos Fernanda Regaldo e Roberto Andrés, editores da revista Piseagrama, que trabalharam por mais de dois anos na pesquisa que deu origem ao livro. O volume tem cara de guia, formato de guia, mas não é um guia como os outros.

Se esse tipo de livro, até pelo nome, tem a função indicativa e um tanto categórica de apontar o que deve ser visto, o Guia morador vai pelo caminho inverso: em vez de remarcar o visível, revela o invisível que andamos perdendo de vista em nossas andanças pela urbe. No caso de uma cidade, o que tem ficado de fora é nada menos que a própria vida, a memória e o projeto de melhorar o mundo. Um guia deveria servir também para apontar novos caminhos, por mais inusitados que eles pareçam.

O Guia morador é obra de arquitetos, historiadores, filósofos, ornitólogos, sociólogos, escritores, fotógrafos e ilustradores. Todos cidadãos. Há um tom de retomada da cidade real por parte dos relatos, que assumem as formas mais variadas. Há textos mais referenciais e outros líricos; pequenos verbetes históricos e reportagens; muitos fatos e até um pouco de fantasia. Os capítulos ganharam também enquadramento visual peculiar, com desenhos, fotos, diagramas e aquarelas, de acordo com o aspecto da cidade que é apresentado no texto.

Os organizadores dividiram o trabalho em 13 partes. São as referências sobre as quais o guia se debruça para revelar a cidade. Para cada uma das entradas, histórias que carregam a personalidade de quem a apresenta, dando a feição de um registro emocional, mas compartilhável por outros moradores e por quem chega à cidade pela primeira vez. Nas palavras dos organizadores, uma “amostragem não estatística com abertura para o acaso”.

O primeiro capítulo do guia, com texto de Elisa Marques e imagens de Thereza Portes, trata das bicas de BH. A seção fala da relação da cidade com a água, apresenta a configuração de suas bacias hidrográficas, denuncia o descuido com o setor e apresenta as nascentes, bicas e minas d’água mais conhecidas da cidade, onde a população ainda se abastece com latas e garrafas e os moradores fazem o que podem para proteger o dom que brota da terra.

Em seguida, o guia apresenta a história e a atuação ainda viva dos carroceiros da cidade, em texto e fotos de Nian Pissolati, que recupera a contribuição de 3 mil profissionais cadastrados de um universo estimado de 11 mil no município. O autor, que desenvolveu pesquisa de mestrado sobre o tema, revela quem são os carroceiros, como vivem, como tratam dos animais e até como festejam seu ofício com os companheiros de jornada. Na terceira seção do guia, dedicada ao cinema, Cecília Rocha e Luísa Rabello mergulham no escurinho da história das salas de exibição da cidade, do fausto às ruínas dos cinemas de rua, com seus personagens, projetos e memórias.

Duelos e fantasmas A cultura pulsa no verbete dedicado ao duelo de MCs, de Phéllipy Jacome e Daniel Iglesias, que perfila os poetas forjados na batalha dos versos. História de ocupação do espaço público pela arte, não esconde outros duelos travados com a administração municipal e a segurança pública. O projeto está suspenso temporariamente e a cidade precisa se engajar para fazer por merecer o duelo de MCs, uma das manifestações de ponta da cultura hip-hop no país.

Os fantasmas de BH assombram o capítulo seguinte, em texto de Heloísa Starling e imagens de Marco Antônio Mota. Curiosa marca da cidade, nossos fantasmas, cantados por poetas como Carlos Drummond de Andrade, parecem gostar de lugares públicos (há até um deles que habita o Palácio da Liberdade), como numa reação mítica ao planejamento da cidade por burocratas pouco afeitos aos mistérios.

Na seção seguinte, quem entra em campo é o futebol de BH, resgatados por Roberto Andrés. Nada de Atlético, Cruzeiro e América: as estrelas são outros dos 250 times da cidade. Agremiações como o Baía, Grêmio Mineiro, Inconfidência, Nacional do Carmo, Pitangui, Tupinense e Sucata, que têm suas trajetórias de glória contadas em diálogo com os personagens e as comunidades que lhes dão vida e emoção. Os campos de várzea crescem em sua função de arenas da sociabilidade.

Da paisagem urbana há capítulos dedicados aos gradis, de Fernanda Goulart e Lorena Galery, e aos passeios, apresentados por Sylvia Amélia. São elementos que mesclam a inspiração arquitetônica de várias eras, que se sobrepõem como numa aventura pela arqueologia da paisagem urbana. Depois de olhar para o chão, o frequentador do guia pode voltar os olhos para cima e acompanhar o verbete dedicado aos pássaros da cidade, com texto de Ivan Mortimer e fotografias de Marcelo Prates. A seção foi feita em ordem inversa: com as fotos na mão, os organizadores procuraram o filósofo e ornitólogo Ivan Mortimer para produzir o texto, uma aula de biologia com direito a texto em primeira pessoa de um catito bico-de-lacre.

Completam o guia seções que descrevem o cuidado de cidadãos com as hortas comunitárias espalhadas pela cidade, por Fernanda Regaldo e Selma Andrade; sobre linhas e armarinhos, com textos e imagens de Felipe Carnevalli, Ulisses Mattos e Vitor Lagoeiro; sobre as guardas, reinos e irmandades, de Júnia Torres, Aparecida dos Reis e Netun Lima; e um pequeno guia de sobrevivência dedicado aos consumidores dos shoppings populares, de Nuno Manna e Lucas Delfino, que ensinam, entre outras coisas, que num shopping popular tudo é barganhável, menos o preço do banheiro.

Cidade viva
O Guia morador permite muitas leituras e aproximações. Além da qualidade dos textos e das imagens, há um esforço em abarcar a cidade por um olhar histórico. As marcas do passado não apenas estão presentes no cotidiano da cidade, como se tornam elementos em transformação na dinâmica da sociedade. São os cinemas que fenecem para dar vida a outras configurações; calçadas que deixam entrever remendos como pentimento de outras histórias; herança do período da escravidão nas manifestações culturais de resistência, que dominam uma cidade nascida com a República, mas que carrega as marcas da violência que a antecedeu.

Outras violências ainda ameaçam a cidade, como o assoreamento dos rios e ribeirões, a falta de saneamento que polui as águas que teimam em lavar com pureza o horizonte sujo e dar de beber a quem estende a mão; os passarinhos que, no cruzamento de dois biomas poderosos, a mata atlântica e o cerrado, teimam em sobreviver e gorjear para alegria dos moradores da selva de asfalto; e os trabalhadores de ofícios quase invisíveis e ameaçados, como os carroceiros, que além de transportar entulhos encontram tempo para tratar bem dos animais e festejar.

Esse método, que parte de uma situação específica para abranger aspectos mais amplos, estrutura todas as partes do guia. Como explica a organizadora Fernanda Regaldo, o particular é uma entrada para temas que são do interesse de todos. “Ao falar de uma bica, por exemplo, o que está por trás é tanto a prática de resistência e alternativa a um uso hegemônico da água, como uma forma de abarcar questões importantes, como a responsabilidade pública pela preservação da qualidade das bacias que servem a cidade.”

Há um convite tácito ao leitor para que entre no jogo e crie suas próprias categorias, pesquise sua história pessoal de relação com a cidade, proponha outros capítulos que traduzam o cotidiano da metrópole, sua multiplicidade e encanto. No site www.guiamorador.org, um mapa animado da cidade identifica os aspectos tratados no livro, que se abrem à interatividade e mesmo à militância. Afinal, o conhecimento da cidade é uma forma de compromisso com seu destino.

Trabalho em construção, o site se propõe a ser uma plataforma aberta, a ser “povoada por micro-histórias, práticas e modos de vida que vão muito além do que nos contam os jornais, a televisão e os guias de turismo”. Além da atualização, o site, de acordo com Fernanda, permite amenizar a inquietação dos organizores frente ao universo de temas, pessoas e práticas vigentes na cidade, que mereciam figurar no guia.

O lançamento, amanhã, às 11h, no ponto de ônibus da Aarão Reis, em frente ao Espanca!, na Praça da Estação, será acompanhado de um café da manhã coletivo. Destes feitos para o convidado se sentir acolhido. É tudo que o morador pode esperar de sua cidade: sentir-se em casa.

GUIA MORADOR BELO HORIZONTE
• Organizado por Fernanda Regaldo e Roberto Andrés
• Editora Piseagrama, 380 páginas
• Lançamento amanhã, (Dia Mundial sem Carro, às 11h, na região do Viaduto Santa Tereza, no ponto de ônibus da Aarão Reis, em frente ao Espanca!. Preço do livro no lançamento: R$ 30.

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