Stefanie Harjes parece ter o incômodo como método para selecionar os textos kafkianos. Ela não escolhe os mais importantes ou literariamente realizados (embora muitos o sejam), mas aqueles que incomodam, que lançam perguntas, que parecem, para usar uma expressão de Carlos Drummond de Andrade, um claro enigma. São passagens que, como também registra, fazem parte de seu contato noturno e insone com a obra do escritor.
O que encaminha para a segunda parte do trabalho: as imagens. O livro tem a composição do sonho. Não há uma técnica preferida e é até difícil falar em estilo da artista. Cada passagem selecionada parece provocar uma resposta visual, que assume forma própria. Se a base é o desenho, há também muitas colagens (que acentuam o caráter compósito e surrealista de alguns textos), fotos, montagens, grafismos, pinturas e até exercício de caligrafias variadas. A atmosfera de estranhamento, no entanto, nunca é referencial, mas cria uma conversa entre texto e imagem que dá o tom pessoal de Meu Kafka.
Assim, o trecho de O processo pode ganhar uma abertura visual que alude ao teatro de bonecos – o que acentua o absurdo de forma irônica – e passar ao registro do desenho que busca personalizar a imaginação e o mito. Em outros momentos espalhados por diversos textos, a figura humana é desconstruída, tem sua identidade atravessada por imagens de horror, desmembramento e animalização. Procedimento expressivo de Stefanie Harjes é a intervenção do texto na imagem, ou vice-versa, como se as letras fizessem parte da linguagem visual. Além da técnica, varia também o peso da cor, o uso de preto e branco, as sobreposições de padrões. A personalidade da artista, em seu embate com o texto, está presente o tempo todo.
Stefanie Harjet nasceu em 1967 e trabalha em Hamburgo, na Alemanha. Estudou artes na Universidade de Praga, cidade natal de Kafka, e é ilustradora de livros e jornais. Meu Kafka é sua estreia autoral. Além das ilustrações, a artista assina cinco pequenos textos, que dialogam com os excertos do escritor tcheco. A belíssima edição da Cosac Naify tem ainda o destaque da tradução, feita diretamente do alemão por Priscila Figueiredo, que preserva o estilo e a atmosfera do autor. E acentua ainda certo apelo poético que o trecho isolado parece carregar, colocando-se no nível do trabalho de Modesto Carone, o mais operoso dos tradutores de Kafka no Brasil.
MEU KAFKA
• Textos de Franz Kafka e ilustrações de Stefanie Harjes
• Editora Cosac Naify
• 128 páginas, R$ 42
• Textos de Franz Kafka e ilustrações de Stefanie Harjes
• Editora Cosac Naify
• 128 páginas, R$ 42