Especialista defende grande plano estratégico para combater violência das torcidas organizadas

O assunto é debatido em 'A violência do futebol' do sociólogo carioca Mauricio Murad, que pesquisa o tema há mais de 30 anos

por Severino Francisco 14/09/2013 00:13
Ed Alves/CB/D.A Press
Briga das torcidas organizadas do Corinthians e Vasco, em jogo no Estádio Mané Garrincha, em 25 de agosto, em Brasília, penalizou o torcedor ordeiro e vai contribuir para afastar as famílias dos estádios (foto: Ed Alves/CB/D.A Press)
A violência nos estádios de futebol parece ser uma tragédia sem solução. As torcidas organizadas têm protagonizado cenas de selvageria nas arquibancadas, não se intimidando sequer diante da ação da polícia. O sociólogo carioca Mauricio Murad, formado pela UFRJ e professor do mestrado na Universo, pesquisa o tema há mais de 30 anos. Ele é autor do livro A violência no futebol (Ed. Benvirá). “Impunidade e corrupção, os males do Brasil são”. O título de um dos capítulos do livro sintetiza o diagnóstico que ele faz do problema a partir de suas pesquisas, elaboradas em um entrelaçamento de estatísticas, análises e reflexões. Segundo Murad, o aumento da escalada da violência nos estádios está conectado diretamente ao envolvimento de integrantes das torcidas organizadas com o crime organizado. Em entrevista ao Pensar, concedida por e-mail, Murad fala da impunidade, da omissão das autoridades , do despreparo da polícia, da responsabilidade dos clubes, da importância da presença de famílias para pacificar os estádios e da necessidade urgente de ações do poder público para conter a violência no futebol.

O senhor pesquisa a violência no futebol brasileiro há mais de 30 anos. Em síntese, o que descobriu ou constatou de essencial para se entender a truculência nos estádios? Há uma escalada da violência?
Sim, há uma escalada da violência nos estádios de futebol e mais ainda fora deles, uma escalada preocupante e inaceitável. Há um conjunto de causas que ajudam a explicar o fenômeno, mas a principal delas, depois de tantos anos de estudos e pesquisas, nos locais inclusive, não tenho dúvida em afirmar, é a impunidade, que, lamentavelmente, é estrutural e histórica em nosso país.

O futebol ou a torcida de futebol se sustenta em uma relação baseada menos no amor ao clube de coração do que no ódio aos adversários? Virou uma torcida do ódio?
A identidade de um coletivo se define e se afirma também na oposição a outras coletividades. Contudo, isso não autoriza ninguém a confundir adversário com inimigo, competição com agressão e a praticar delitos, transgressões e violências. Há muito ódio, sim, e este é um dado de irracionalidade, o qual ajuda a entender a questão. Entretanto, é bom que se diga que a imensa maioria dos torcedores não é movida por esse combustível, mas pela festa, pela alegria e pela competição minimamente civilizada. O ódio e a violência são práticas de minorias.

Na Inglaterra, o problema foi sanado. Que lições tirar da experiência inglesa?
Nenhuma sociedade conseguiu resolver 100% a violência, em qualquer âmbito social. A Inglaterra não solucionou tudo, mas conseguiu colocar a violência dos torcedores em níveis aceitáveis e sob o controle das instituições. O preparo da polícia para lidar com multidões — que têm uma psicologia e uma sociologia distintas daquelas dos indivíduos e dos pequenos grupos —, e a redução drástica da impunidade são lições que podemos e devemos aprender. Além disso, na Inglaterra, o governo assumiu o controle e a pacificação dos estádios e de suas áreas próximas, como uma estratégia nacional, prioridade de governo, e envolveu clubes e federações, inclusive nas punições.

Parece que há um jogo de empurra quando a violência explode nos estádios. Afinal de contas, de quem é a responsabilidade? Até quando o Estado brasileiro será omisso em relação a tão grave problema?
Para um conjunto de causas haverá, claro, um conjunto de responsabilidades. Esse "jogo de empurra" não é exclusivo com os problemas do futebol. Governos, federações, clubes, dirigentes, torcedores, jogadores, treinadores, polícias, enfim, todos os envolvidos com o espetáculo do futebol. Afinal, nesses casos de violência, o futebol, como cultura popular e entretenimento coletivo, é a principal vítima desses vândalos, desses delinquentes. E a vítima, muitas vezes, sai como vilão. É preciso uma grande articulação entre variados grupos e setores sociais para construir um plano estratégico nacional. O futebol exige, a sociedade brasileira merece e a história cobrará.

Qual a responsabilidade dos clubes na violência nos estádios?

A responsabilidade dos clubes está, principalmente, na doação de ingressos para as torcidas organizadas, que usam isso como moeda de troca de favores e instrumento de poder. Esses ingressos, muitas vezes, vão parar nãos mãos de cambistas, verdadeiras quadrilhas que envolvem policiais e funcionários corruptos, além de grupos de torcedores violentos.

Como se explica a impunidade dos que cometem delitos nos estádios?

A impunidade é o pior de nossos problemas, porque além de ser um problema em si é fator multiplicador de outros problemas sociais, como a corrupção e a violência. Leis há, o que não há é a aplicação efetiva delas. Como disse um de nossos historiadores clássicos, o professor e escritor Capistrano de Abreu: "Se a mim fosse dado o direito de escrever a Constituição Brasileira, esta teria apenas um artigo — cumpram-se todas as leis existentes." Um delegado de Brasília reclamou que a polícia prende os que praticam atos de selvageria nos estádios e, no dia seguinte, os responsáveis são soltos porque há respaldo na legislação. Ser punido com uma cesta básica pela violência não é uma piada?

Falta uma legislação específica para punir ou falta usar a legislação que já existe?
Não é falta de legislação, mas falta de punição efetiva, de aplicação severa das leis, e o que falta também é a justiça levar os processos até as últimas consequências. Temos o Estatuto de Defesa do Torcedor, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Crime Organizado e a própria Constituição brasileira, que são instrumentos jurídicos para punir e prevenir esses grupos do crime organizado que se infiltram nas torcidas de futebol.

Os preços dos ingressos das novas arenas são salgadíssimos. O senhor acha que a elitização econômica do futebol banirá a violência dos estádios?
Os preços de fato são altíssimos e isso não banirá a violência dos estádios. Infelizmente, as nossas pesquisas provam que as práticas de violência são feitas por gente de todas as classes sociais, de renda e de escolaridade. Portanto, está perigosamente disseminada. Além disso, na atualidade, os crimes mais graves, os homicídios, acontecem fora dos estádios e não dentro das arenas esportivas. Só em 2013, até julho, já contabilizamos 13 mortes comprovadas de torcedores em consequência de conflitos entre esses grupos radicais das torcidas organizadas.

O estádio passou a ser um lugar ameaçador para as crianças, para as mulheres e para as famílias. O senhor acha que é importante a presença das famílias no sentido de uma luta pela pacificação dos estádios?
A presença das famílias é fundamental para repacificar os estádios e voltarmos, mais ou menos, como era antigamente. Está comprovado que a maior presença de mulheres, crianças e idosos ajuda a neutralizar os vândalos. Agora, é preciso que a polícia dê segurança às famílias, reprimindo e prevenindo os excessos e as transgressões.

Qual a importância da pacificação dos estádios no sentido de uma educação para a cidadania no Brasil?
O futebol é uma de nossas identidades coletivas e, por isso, tem um impacto simbólico imenso para a sociedade brasileira. A pacificação dos estádios e de suas áreas adjacentes pode ser um exemplo significativo para aquilo que é direito dos cidadãos e dever dos governos: a paz social.

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