Armando mescla poemas íntimos, sobre a vida amorosa e familiar, a poemas que conversam com o noticiário contemporâneo, como o massacre da Candelária e o goleiro Bruno, e ainda dialoga com a novíssima poesia brasileira, como no poema feito a partir do último livro de Angélica Freitas, Um útero é do tamanho de um punho.
O corpo, a cidade, a memória e o próprio fazer poético são temas recorrentes nos textos de Armando, como também a solidão e a vida simples, dentro de um mundo complexo, ordinário, fútil de descaminhos. Memória é consciência. O coração busca sentidos. O poeta procura, por isso, perceber os percalços, as mudanças, os trâmites, as urdiduras. Tudo tem um enredo, uma tramoia e a poesia desnuda, para revestir o novo do que existe de mais novo.
A mão livre, a cabeça do homem Armando, os seus olhos respiram poesia. A sua máquina de escrever escreve. Dever poderia ser, e é, rever. É o máximo: os poemas de Armando têm peito e plexo solar. Seus poemas sofrem, todos os poemas têm raiva.
A poesia tem essa missão, tem esse imenso dever, ela nos desperta de uma espécie de dormência. Ela nos lança, ela nos joga num buraco de luzes e abismos. Sempre no prejuízo, no vermelho, nunca fecha a conta do mês para o poeta. Mas é feito de azuis este serviço, este ofício sem préstimo, sem serventia alguma. Armando é dono de uma poesia feita de extremos, é dono de uma poesia extremamente sofisticada. Ele escreve no limite, no vai não vai, numa espécie de faz de conta que tira das coisas banais, que percebe nelas (banheiros, igrejas fechadas, um lápis de ponta grossa, em varetas e flores) significados repletos de importância. Os restos, o resto, aquilo que nunca se resolve, tem peso de ouro para Armando. Como é de um puro diamante metamorfoses, os adversos, e o outro, que é sempre fonte de encanto e perdição. Armando escreve sem falsidade e sem firulas, mas com um rebuscamento, com um requinte que se faz necessário quando o assunto é poesia e estilo.
Família e morte
O poeta tenta entender a morte: “Quem assina testamento/ assina embaixo da morte/ a endossa, e testa, tenta/ domesticá-la, para evitar/ a desordem do post mortem/ com um afago cuidadoso./ Mas o que é de fogo – fatal –/ não entende o carinho da mão/ estendida, e a queima inteira./ Não por maldade, mas porque tem/ que ser assim, no juízo final”. O poeta sabe que "a vida é vidro".
É também recorrente na poesia de Armando a presença de pai e mãe: “Puxar pela memória não tem fim.” E o poeta, dono de seus detalhes, sabe do amor, adornado, acrescido de detalhes: “Sua primeira aparição/ foi na ponte do pátio da primavera/ revelado em nítido p/b./ Só você estava tecnicolor./ A partir da sua tez, da sua roupa/ do olhar azul inquiridor/ todas as cores se concentraram/ na sua figura e no seu tênis fúcsia.”
Sempre em falta, o poeta não sabe por que, o que, e a quem deve. O poeta, bobo, paga com poemas, mas paga com juros uma dívida que, infinita, alimenta-se de ar. O poeta não deixa de ser apenas uma criança, nunca deixa de ser ingênuo, um fanfarrão que tenta, com palavras, dar jeito no mundo. O poeta tenta, com sentimentos e com palavras, preencher de cores aquele vazio feroz. O poeta perdeu o trem e o prumo. Contudo, para formular, para ver crescer paradoxos, para meras especulações, o poeta tenta a difícil travessia até o verso.
Não há melhor definição para a delicadeza. Armando deixa claro sua vontade de progredir, permanecendo: “Evito não escrever, mesmo se não há/ convite ou visita instigante da inspiração/ Escrita é treino, ginástica, rascunhografia/ momentos vários de dias em um dia único, indiviso./ Série de exercícios de repetição, a fim de alcançar/ não menos, mas mais segundos para a mão.”
Generoso, Armando distribui carinhos e poemas para os seus pares: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira. Armando, em seu livro, fala também das agruras do cotidiano, do dia a dia familiar, com uma pitada fina e segura de uma ironia boa que, tantas vezes, torna-se perfume e bálsamo. Armando, com sua rede de pescar palavras, atinge o alto escalão e a plebe. Mas ninguém sabe. Não sei dizer, mas quem sabe? O dever de casa, para Armando Freitas, fica necessariamente incompleto. Deixar a escola não significa que aprendemos algo. O ano letivo, para o poeta, não deve acabar nunca.
Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, Armando foi secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro, pesquisador na Fundação Biblioteca Nacional e assessor no gabinete da Presidência da Funarte, cargo no qual se aposentou. Armando Freitas Filho nasceu e mora no Rio de Janeiro.
DEVER
• De Armando Freitas Filho
• Companhia das Letras, 168 páginas, R$ 36