Casa Kubitschek, na Pampulha, representa momento importante da constituição do modernismo em Minas

Museu instalado no imóvel contribui para elevar a qualidade do patrimônio de BH

por Leônidas Oliveira 31/08/2013 00:13
Beto Novaes/EM/D.A Press
Casa Kubitschek, na Pampulha, marca a passagem na história da cidade em direção ao modernismo (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)

Sob a perspectiva hermenêutica, é evidente que toda leitura da história se realiza a partir dos desafios do presente, porque a percepção e a compreensão da historicidade da cultura dependem, entre outros fatores, da memória que o sujeito atualiza, por meio da experiência, da maneira como interpreta o mundo e julga esta percepção. Aí também se fundamentam as expectativas que ele tem frente ao futuro. Essa aparente dualidade foi também enfrentada pelo modernismo brasileiro, com traços inovadores, mas com profundo arraigamento na história local. Lúcio Costa, analisando a questão – central no entendimento da nossa modernidade –, defendia que só a partir de Niemeyer é que começou a ser desenvolvida uma arquitetura moderna genuinamente brasileira.

A percepção da identidade histórica nesse caso se deu pelo vínculo ao nosso passado colonial – e o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, constitui sua maior expressão. Para Lúcio Costa, obras de arquitetos como Warchavchik (que desenhou a primeira casa modernista em São Paulo, na década de 1920) e Flávio de Carvalho (uma casa-sede modernista para a fazenda Capuava, na década de 1930) não passavam de modernismo importado, feito no Brasil, mas não brasileiro. Falando sobre Niemeyer, Costa dizia que, ao ligar sua obra à tradição, o arquiteto criou uma legitimação para a arquitetura moderna, ao mesmo tempo em que a colocou numa dialética. Afirmou ainda que tal arquitetura não precisava de legitimação, pois a linguagem muito própria de Niemeyer seria facilmente reconhecida no mundo, pelas especificidades de sua genialidade.

A Casa Kubitschek é um raro exemplo dessa conciliação entre o passado e a forma mais contemporânea da então década de 1940, quando foi construída. Como tipologia, deixa entrever o modo de vida moderno brasileiro. Em forma de “U”, com extenso pátio interno, a edificação se desenvolve a partir de grande varanda na parte frontal, tais como nossos casarões coloniais urbanos e em grandes engenhos do Recôncavo Baiano. Essa transição do espaço exterior para o interior prepara o visitante para os grandes salões de pé direito duplo que o espera no interior. O teto, conformado de forma ascendente, deixa entrever a conformação externa do telhado em duas águas que denominamos borboleta. Mas é nos quartos que a tradição é revisitada em sua maior força. Característicos dos casarões de Diamantina, terra do então presidente e cliente Juscelino Kubitschek, todos os quartos destinados à família ligam-se entre si por meio de portas e banheiros compartilhados, tal como as alcovas dos casarões coloniais.

A casa Kubitschek é uma clara referência aos casarões tradicionais dos primeiros tempos do Brasil Colônia, e impressiona sua íntima relação com o casarão do Museu Histórico Abílio Barreto, dotado de corredores e cômodos que se justapõem, para não dizer das varandas análogas. No entanto, se por um lado tais características levantam a questão de reforço da identidade brasileira, alicerçada pelo Barroco – período no qual aqueciam as interações culturais entre os povos constituidores do Brasil –, por outro, a melancólica ideia de retorno a outro tempo, que já não coincide com o nosso, sublima-se como consequência de um sentimento de desencanto ou desilusão perante o progresso, o presente e seus fetiches ideológicos e culturais importados.

Assim foi o movimento antropofágico da Semana de Arte Moderna de 1922. Portanto, tal arquitetura se mostra também desse modo moderna no seu polimorfismo, ao mesmo tempo que através de uma crítica de raiz romântica e historicamente metafórica presentes no conjunto da Pampulha. Numa espécie de revolta melancólica, em linha disfórica, de crítica moderna à própria modernidade. Este sentido é tão verdadeiro que o próprio Niemeyer afirmava: “É curioso ver esse rolo, sentir como a imaginação varia, como as idéias vão surgindo diferentes, ora com dois ou três volumes, ora simples, caminhando para o monumental. Em todas, prevalece a curva, essa liberdade plástica que preferimos, decorrente de "tudo que vimos e amamos na vida”, como me disse um dia André Malraux do seu museu imaginário”.

História e memória

Configurando-se como novo espaço museológico da Fundação Municipal de Cultura, a Casa Kubitschek abre suas portas com uma reflexão sobre os conceitos do modernismo e a forma de morar desse período tão significativo para a história de Belo Horizonte e do próprio país. A exposição, segundo a proposta curatorial de Mariana Brandão e Denise Bahia, apresenta em sua narrativa dois eixos principais que se interpenetram: um referente à história e outro que remete à memória. Os dois eixos estruturantes operam por meio da abordagem antropológica, segundo a qual a casa é um objeto identitário, relacional e temporal e uma materialização da experiência vivida. História e memória são mostradas expograficamente em percurso que parte da referência histórica do ambiente político e cultural em que surge o modernismo, época em que a Casa Kubitschek foi criada.

A casa é situada no tempo, inscrita em linha cronológica. Começando pelo setor social, esse ambiente político e cultural é apresentado por meio de textos, obras literárias e artísticas, publicações e um conjunto de desenhos técnicos do projeto arquitetônico da residência e do projeto original do mural criado especialmente para a edificação pelo artista Paulo Werneck, na varanda e na sala de estar. Tais espaços contam ainda com o painel de Volpi e com o mobiliário originalmente integrado. A arquitetura imaginada, ou racionalizada, expressa por meio dos projetos, está presente, dando continuidade à trajetória da casa no tempo. Apresenta-se o projeto de restauro, com informações sobre os critérios e os processos de execução das obras até a efetivação de seu novo uso como casa museu. Dessa forma, história e memória seguem referenciadas em todo o percurso.

A sala de jantar permite a leitura do ambiente original, que tem como protagonistas absolutos o uso do espaço e o mobiliário original, fruto da expografia, assim como no mezanino a ela articulado, onde se destacam, além dos móveis, a vitrola e o conjunto de discos do acervo. A coleção de discos é tratada pela expografia como objeto potente de representação musical e gráfica, significativa da estética da época. Dessa forma, a casa vai contando e contextualizando sua forma por meio de claras narrativas interpretativas. No térreo, antiga garagem, uma outra exposição, centrada no território da Pampulha, desenvolve-se explicando, de forma clara e lúdica, a história da formação da Pampulha, desde a antiga fazenda até o grande complexo urbanístico-arquitetônico de hoje.

Das numerosas pampulhas que são apresentadas na exposição, duas são de fundamental importância: a primeira, acompanhando o marco cronológico, é a Pampulha Velha, que se originou naturalmente, em inícios do século 20, fundada com um aglomerado de fazendas, caracterizada pelo forte sentido de povoação e religiosidade. A segunda, a Pampulha Nova, criada na década de 1940 em volta da lagoa, com edificações voltadas para o lazer, foi idealizada, planejada e executada para satisfazer a aspirações estéticas, políticas e econômicas do poder político estabelecido.

A partir dessa complexa trama desenvolvida nesse novo museu interpretativo da Pampulha será possível compreender que os padrões de ambiguidade culturais tratados (herança cultural híbrida, política, multiplicidade, modernidade), estão amarrados entre si, sendo coerentes com a nossa contraditória onde a tradição e a modernidade coexistem, redefinindo-se, reproduzindo-se mutuamente, mas de forma diferenciada, onde muitas vezes o “primitivo” está subordinado ao moderno e vice versa.

Dessa forma, apesar de reconhecermos as características específicas de nossa sociedade e que a mesma possui uma dinâmica sóciopolítico econômico-cultural própria, a Casa Museu Kubitcheck busca romper com as teses dedutivistas que postulam um determinismo exógeno e a transposição dos modelos arquitetônicos clássicos europeus. Não há como não reconhecer que o nosso horizonte civilizatório é o da moderna sociedade industrial. É a modernidade (entendida como “tempo eixo” em torno do qual, ainda que deformadamente estamos nos moldando), sob a forma da sociedade industrial burguesa, que é hegemônica em nossas terras, porém redefinida como modernidade tupiniquim.

Celso Furtado falará em “modenização dependente”, Darcy Ribeiro, em “modernização reflexa” – que aqui se implanta, transfigurada como modernização conservadora sob as marcas da dependência e da heterogeneidade estrutural. Mas esse processo fundamentalmente cultural nos apresentou um vasto campo de reflexão para buscar compreender a arquitetura e a espacialidade urbana modernista que se formaram nesse período de beleza, ousadia e esperança. Com mais esse espaço, o conjunto Pampulha se fortalece na cena cultural de Belo Horizonte, como polo aglutinador das forças que criam e recriam as identidades e memórias para além da própria cidade, e portanto, como referencial da própria brasilidade. Esse presente para Belo Horizonte, em resumo, é mais um passo para a conquista do titulo de Patrimônio da Humanidade, aposta estratégica da política do patrimônio cultural do município.

* Leônidas Oliveira é presidente da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte.

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