Escritora fala sobre livro baseado no diário escrito pela mãe quando ficou presa em Auschwitz

por Carlos Herculano Lopes 31/08/2013 00:13
Depois de ouvir desde a adolescência, num misto de encantamento e temor, que a sua mãe, a sérvia judia Lili Jaffe, havia escrito um diário contando o que havia ocorrido com ela durante os 11 meses, de 1944 a 1945, quando esteve presa no campo de concentração nazista de Auschwitz, a escritora e crítica literária Noemi Jaffe acabou transformando-o no livro O que os cegos estão sonhando?. Para “sentir o que não sabia”, em 2009, enquanto começava o processo de montagem do texto, esteve no campo de extermínio. Em paralelo, Noemi escrevia também a coletânea de contos A verdadeira história do alfabeto e alguns verbetes de um dicionário, que está entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom. Já O que os cegos estão sonhando?, por sua vez, é finalista de outro prêmio importante, o Zaffari & Bourbon, do Rio Grande do Sul. Nascida em 1962, em São Paulo, onde vive, Noemi Jaffe, que anda às voltas com um novo livro – um romance que se passa na Hungria, em 1957, durante a revolução – conversou com o Pensar sobre literatura, guerra, memória e universidade.
Cia das Letras/Divulgação
Cia das Letras/Divulgação (foto: Cia das Letras/Divulgação)

No ano passado, 67 anos depois de os fatos terem ocorrido, finalmente o diário escrito por sua mãe foi publicado no Brasil. Como se deu o processo?
Depois de minha mãe ter voltado para a Sérvia em busca de parentes sobreviventes, ainda em 1945, e não ter encontrado ninguém, ela acabou conhecendo meu pai, que se apaixonou por ela. Como ela tentava ir para os Estados Unidos, atrás de seu irmão que tinha sobrevivido, aliando-se ao Exército americano, ela foi para a Hungria em busca de documentação e deixou o diário como lembrança para meu pai. Ele foi atrás dela, em Budapeste, e, como ele tinha uma família grande aqui no Brasil, ofereceu casar-se com ela somente para fins civis. Assim, ela chegaria ao Brasil com a documentação necessária para poder ir para os Estados Unidos. Mas, no meio do caminho, eles se apaixonaram, chegaram aqui e se casaram também no religioso. Quando nasci, em 1962, meus pais já estavam bem estabelecidos e dominavam a língua. Desde pequena, portanto, ouço as histórias de minha mãe e de meu pai, já falecido, sobre a guerra e sei da existência do diário. Na minha adolescência, já planejava fazer algo em relação a ele e, ao longo de minha pesquisa, encontrei anotações daquela época sobre planos para um livro. Nos anos 1990, minha mãe, minha irmã e eu traduzimos o diário para o português e o entregamos ao Museu do Holocausto, em Jerusalém, onde mora minha irmã. A Fundação Spielberg ficou sabendo da existência do diário e entrevistou minha mãe. Naquela época, tentei montar um livro com o diário, mas a ideia não deu certo. Finalmente, em 2009, ganhei um edital da Petrobras com esse projeto e no mesmo ano fui para Auschwitz com minha filha, já com a intenção de escrever o livro. Basicamente, foi isso o que aconteceu.

Você escreve na introdução que, embora soubesse da existência do diário, este se constituía “como um mistério e um tesouro que, com certa inconsciência, não queria desvendar”. Por quê?

De alguma forma, era como se não quisesse e temesse violá-lo, conhecendo seu conteúdo ou traduzindo-o para o português. Talvez temesse que o seu conteúdo fosse diferente daquilo que minha mãe contava ou quisesse mantê-lo numa atmosfera quase sagrada, imune a uma ideia de profanação pelo português e por mim. Mas, como constatei, não foi esse o caso. Foi muito bom tê-lo traduzido. Para todos, mas sobretudo para minha mãe, o que é o mais importante.

E a sua mãe, como lidava com o diário? Era também um tabu para ela?
Não, o diário nunca foi um tabu para minha mãe nem para meu pai. Nunca esconderam nada de mim. Ao contrário, fizeram questão, sobretudo meu pai, de me contar as histórias, os perigos, as aventuras. Como minha mãe é uma pessoa alegre e generosa, suas histórias não me faziam sofrer e eu tampouco a sentia como uma vítima. Sempre a considerei uma mulher forte e que consegue superar qualquer problema que a vida oferece.

Como surgiu a ideia de realizar o livro em parceria com sua filha, Leda Cartum? E qual foi sua reação ao chegar a Auschwitz?
Como minha filha Leda é escritora, formada em letras, no decorrer do processo surgiu também a possibilidade de ela participar do projeto, sob outro ponto de vista, da terceira geração pós-sobrevivência. Ela aceitou e fomos à Alemanha em 2009. Minha reação, ao chegar a Auschwitz, foi tentar assumir algum ponto de vista que não fosse pasteurizado, massificado. Decidimos ir durante o inverno – 20 graus abaixo de zero! – e sem guia. Só nós duas mesmo. Diante do horror evidente, procurava informações menos visíveis: os olhos nos retratos, os nomes nas malas, as datas, anotações nas paredes, nos banheiros, nos documentos, números nas listas dos oficiais nazistas, marcas nas paredes, inscrições, falhas na madeira, nas paredes, coisas assim. Penso que encontrei várias informações que me permitiram ver, no campo, não somente o lado terrível das mortes, mas também o aspecto heróoico dos sobreviventes e dos que morreram. Mas, de qualquer maneira, é uma experiência que só o corpo consegue (se tanto) viver. As palavras são realmente insuficientes, pois nada ali é do domínio do verbal, embora seja um dever transformar tudo em palavras. Mas uma coisa muito irritante é o lado comercial que é explorado pelas agências turísticas de Cracóvia e pelos próprios turistas. É muito incômodo.

Como que se deu sua iniciação como ficcionista?
Escrevo desde que aprendi a ler e a escrever. Desde pequena invento alfabetos. Creio que o fato de ter sido depositária dessas histórias favoreceu muito meu pendor por narrativas e por um tipo de confinamento. Sempre me senti à margem de meus colegas e minha forma de me consolar dessa solidão era, quase sempre, lendo e escrevendo, além de me dedicar ao estudo de outras línguas. Tinha um tio que sempre me presenteava com livros muito bonitos e creio que a leitura desses livros foi o que me iniciou na ficção. Meus primeiros textos ficcionais foram escritos na escola mesmo e também num movimento juvenil judaico que eu frequentava.

Como se deu o processo de criação dos contos de A verdadeira história do alfabeto e alguns verbetes de um dicionário?
Enquanto escrevia o livro O que os cegos estão sonhando?, tinha recebido um convite para escrever um livro de contos pela Companhia das Letras, e não quis perder a oportunidade. De alguma forma, creio que um era uma espécie de contraponto do outro. Ambos falam de origens. Um de minha origem familiar, judaica e histórica; o outro, da origem ficcional das letras do alfabeto. Fui descobrindo, enquanto escrevia os dois, que há muita ficção em qualquer história assim chamada real e isso aparece também no diário. Estava lendo um livro do David Grossman, um autor que admiro muito, em que as personagens falam sobre hospitalizar palavras doentes, que são aquelas palavras muito desgastadas pelo uso banalizado. Isso me fez pensar em um uso inaugural das palavras e das letras, que é exatamente o que faz a poesia. Assim, fui pensando em palavras para cada letra e uma pequena narrativa em que algum personagem teria precisado daquela palavra e daquela letra para alguma circunstância, o que o teria feito inventá-la. Também criei um dicionário com palavras já existentes no português, mas com acepções diferentes daquelas encontradas nos dicionários comuns.

Além de ficcionista, você também é professora. Qual o papel que a academia tem desempenhado hoje em relação à literatura brasileira?
A literatura brasileira contemporânea não é muito ensinada nas universidades brasileiras. Já se chegou às décadas de 1960, 70 e 80, o que é um grande avanço, ao menos em relação à época em que eu estudei, quando só se chegava até os anos 1940. Em algumas pós-graduações também se ensina a literatura contemporânea, mas são poucas. No geral, a atenção que se dá é pouca e insuficiente, embora seja compreensível que a academia brigue por conservar a tradição – é o seu papel – e que ela esteja sempre atrás da produção. Mas deveria, certamente, haver um esforço maior no sentido de estudar e de incentivar a produção contemporânea, com mais revistas, seminários, ensaios e, principalmente, disciplinas.


O que os cegos estão sonhando? – Com o Diário de Lili Jaffe (1944-1945)

•  De Noemi Jaffe
•  Editora 34, 236 páginas


A verdadeira história do alfabeto e alguns verbetes de um dicionário
•l  De Noemi Jaffe
•  Editora Companhia das Letras, 128 páginas

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