Médicos cubanos chegam ao Brasil e a primeira praga que enfrentaram foi o preconceito

Não bastasse a infantilidade da política, convivemos esta semana com a imbecilidade em vários setores da sociedade

por João Paulo 31/08/2013 00:13
Viola Junior/Esp.CB/D.A Press
(foto: Viola Junior/Esp.CB/D.A Press)

A divisão do mundo entre gente grande e gente pequena, quase sempre, parece se referir ao mundo dos adultos e das crianças. Os grandes cuidariam das coisas sérias, já que, infelizmente, não são mais dotados da graça da infância. No entanto, a política brasileira parece ter misturado as categorias e criado, entre os adultos, uma pequenez de alma e infantilidade de propósitos que faz com que se tornem todos miúdos. A política brasileira é de gente pequena.

Uma das características das crianças é a birra. Em vez de se concentrar nos fatos, ficam presos à emoção que cerca a realidade. Assim, perdem tempo com questões menores e são incapazes de mudar de opinião ou mesmo de sustentar uma que mereça respeito. No lugar de propostas, preocupam-se em falar do outro; em vez de apresentar projetos, ficam apontando o dedo para o defeito dos concorrentes; deixam de lado a função prospectiva da política para regredir a níveis de indigência intelectual.

São muitas as situações petizes da política nacional. A mais exemplar delas pode ser vista no jogo pouco sério entre as candidaturas postas à Presidência. Os candidatos e candidatas mais consistentes têm perdido tempo em executar um balé desgracioso para a plateia, deixando de ocupar a cena pública para o saudável debate de ideias e projetos.

A situação fica batendo na mesma tecla dos projetos de conhecimento geral – em vez de enfrentar os novos desafios – enquanto a oposição deixa de mostrar o que tem de diferente a propor para saúde, educação, segurança e desenvolvimento, se perdendo em apontar gafes e deslizes insignificantes. Entre a compulsão à repetição e a alienação dos verdadeiros temas, perde o cidadão.

A infantilidade não habita apenas a campanha eleitoral já disparada e o nível federal, mas vários momentos da vida institucional do Estado brasileiro em todos os níveis. Na nossa cidade, a incapacidade de diálogo gerou um comportamento pouco produtivo entre administração e cidadãos, dando origem a um ambiente de contínua conflagração e perda de substância política.

O estrangulamento das políticas sociais em Belo Horizonte são ainda visíveis na questão da moradia e das áreas ocupadas tratadas com violência e desprezo; na educação básica que não se universaliza para os menores de 6 anos; na concepção errática da política de mobilidade urbana, fato sentido por toda a população, que assiste agora o anúncio de um estudo de linha de metrô ligando Belvedere e Savassi, certamente a menos urgente das prioridades do setor.

No âmbito estadual, a concentração excessiva nas ações intermediárias parecem paralisar o impulso à ação, em nome de permanentes anúncios de cortes, acertos internos, contenção e reformas da máquina. Há um limite que precisa ser pensado entre o enxugamento e a provisão dos serviços. O apoio excessivo nos meios em detrimento dos fins gera uma comportamento neurótico, fixado em normas e regras obsessivamente perseguidas.

Um exemplo claro desse descaminho é a dificuldade de se resolver problemas que saem da alçada de um nível de governo, em razão de competência estabelecida por outro, ainda que fira de morte a saúde da sociedade. É o caso da duplicação da BR-381, obra mais que viável e desejada pelos cidadãos mineiros, que não é assumida pelo estado menos pela inexistência de recursos que pela incapacidade de se guiar por outros valores políticos que superem marcos que se mostram ineficientes.

Besteiras em série

Não bastasse a infantilidade da política, convivemos esta semana com a imbecilidade em vários setores da sociedade. A chegada dos médicos cubanos foi um dos momentos mais vergonhosos da história recente. A enxurrada de preconceitos, que vieram de todos os lados, foi capaz de passar por cima da ciência, do bom senso e até da educação.

As entidades de classe, com os conselhos à frente, chegaram a divulgar um chamamento ao descumprimento ético das funções dos profissionais de saúde, convocados a não dar seguimento a atendimentos feitos pelos colegas cubanos. Ato de irresponsabilidade, foi secundado por manifestações preconceituosas e racistas de estupidez inacreditável.

O corporativismo, que numa sociedade complexa é um instrumento entre outros de defesa de interesses a serem negociados na arena pública, ganhou de parte dos médicos brasileiros (nem de todos, é bom frisar) uma tradução que deixou de lado a defesa de mercado para atentar contra o interesse maior, que é a saúde humana.

Numa atitude que radicaliza a biopolítica decifrada por Foucault como um dos instrumentos de poder da sociedade contemporânea, as entidades médicas assumiram a ponta de lança do conservadorismo, que é a perpetuação das injustiças. Pode-se ser de direita ou de esquerda, mas é desumano ser a favor da violência (que é a falta de assistência, negada assertivamente pelos profissionais brasileiros) e da injustiça contra parte significativa da sociedade.

E a burrice não ficou apenas com as entidades de classe. Parte da sociedade, com a mídia dando apoio, tratou de nomear os contratos com os médicos cubanos como casos de trabalho escravo. É compreensível que haja oposição ao projeto (e onde estão as propostas alternativas viáveis e imediatas para a falta de médicos nas periferias e grotões?), mas não que se torça uma categoria de análise sociológica, como a de trabalho escravo, sob o risco de esvaziar o duro combate a essa modalidade que ainda é vigente no país.

A acusação de trabalho escravo, além de desconhecimento, deixa entrever a relação materialista que a classe média brasileira mantém com o trabalho. Talvez por isso tenha soado tão estranho o depoimento de médicos estrangeiros, muitos com experiência de sobra, que afirmam o desejo de fazer o bem. No âmbito das relações materiais e de consumo, o que não é quantificável não existe. Menos ainda solidariedade e internacionalismo.

Por que é tão comum nos médicos cubanos o empenho em se especializar em medicina social e da família? Trata-se apenas de uma resposta à falta de tecnologia ou uma opção feita em razão das condições sociais da população? É exatamente o caráter social que custa tanto a ser compreendido pelos médicos brasileiros, dependentes de tecnologia intensiva e formados no mais liberal dos mercados profissionais. O medo, pelo que se vê, não é da concorrência, mas da irrelevância.

Por isso o ódio da filósofa Marilena Chauí contra a classe média, recentemente publicada na internet, se mostrou tão expressivo: a classe média não é nosso outro, mas o mesmo que nos persegue o tempo todo, com sua alienação, com sua violência e sua ignorância. Para esses males não há filosofia ou médico que dê conta.

MAIS SOBRE PENSAR