Deriva e retorno no livro de contos Mistura fina, de Vera Casa Nova

As histórias não são tratadas como fatos objetivos, como lembra a autora na espécie de introdução que dá título ao livro

31/08/2013 00:13
Patrícia Carmello

manim/mostra arte favela nos becos
(foto: manim/mostra arte favela nos becos)


O estupro no táxi, a surra da polícia, a tortura na ditadura de 1968, os sem-teto da periferia e outras tantas situações da nossa barbárie cotidiana, mas também a conversa no botequim e outros casos tragicômicos constituem o material com que Vera Casa Nova tece seus contos, no livro Mistura fina, e vai erguendo suas barricadas. De um desejo não todo submetido à ordem fálica, mas lançado pela palavra que libera o riso e a festa, onde se dança mesmo “desfilando de amarelo”, e onde se goza mesmo sob as preces dos pastores, como dançam e gozam suas protagonistas.

Porém, as histórias não são tratadas como fatos objetivos, como lembra a autora na espécie de introdução que dá título ao livro. Pois em meio às distintas vozes “passantes e passadas” recolhidas para compor seu texto, uma parece predominar e, curiosamente, apontar o método que ela julga inexistente: a voz do jornal, a crônica da vida nacional, que despeja o volume de crimes individuais in natura diariamente diante dos espectadores-ouvintes, e que aparece em diversos contextos ao longo do livro.

Desde sua pesquisa de doutorado sobre almanaques antigos de farmácia, na qual explorou a relação entre texto e imagem, Vera parece tomar este material, as notícias, exatamente como quem coleciona inscrições, ou como são apresentados os grafites dos muros de 1968 no livro de Olgária Matos, que não por acaso dá nome a um dos contos, “Paris 1968: As barricadas do desejo”, como legendas significantes dos movimentos estudantis e operários em ebulição na época.

 A frase epígrafe desta resenha poderia ser lida como revivescência do surrealismo retomado pelos situacionistas, que figuravam entre os principais responsáveis pelos escritos de rua do maio francês. Movimento artístico e político dissolvido em 1972, o situacionismo teve entre suas figuras centrais Guy Debord, cineasta e teórico proveniente do Movimento Letrista, grupo que, nos anos 1950, pretendia restaurar a força primordial da linguagem, atribuindo à letra um sentido independente da palavra, ligado a seu caráter de som. Portanto, é na qualidade de inscrições diagnósticas do nosso tempo que as notícias são recortadas e coladas sob outras configurações, sendo desnaturalizadas num processo de remontagem, que, se em outros autores limita-se ao simples jogo ou pastiche, aqui é permeado por uma decisão crítica e ética por parte da autora.

Assim, em Mistura fina, operam-se inversões pouco comuns na cena literária contemporânea, e são traçadas verdadeiras vinganças contra as restrições do tempo: da espera criam-se espelhos e deleites, da miséria sai uma casa em construção, e até do estupro ouvem-se gritos de prazer. Tudo isso se escreve com humor muito distante do cinismo ou da hipocrisia, da recusa em ver saídas ou do ver saídas demasiado fáceis para os conflitos apresentados.

Mas, antes que se acendam fogueiras, não é demais pontuar: a literatura, compreendida como lugar de criação da realidade, não se confunde com ela. Apesar de aquele gozo surgir na letra do texto como justificativa para a sobrevivência, logo se vê que ele advém do absurdo e provoca o riso (“os bandidos horrorizaram”) – um riso que vem abalar a estrutura da notícia-clichê, que aparece enquanto tal em outro conto: “outra curra seguida de morte”. Trata-se, pois, da interrupção de sentido, ou da afirmação simbólica de que a notícia pode ser outra. Nas palavras de Debord, a passagem marcaria o momento em que a montagem se apropria das imagens reificadas e, ao revelar seu caráter cênico, toma de volta seu lugar ao espetáculo, desviando-as de seu sentido estabelecido pela irrupção de uma abertura a novos sentidos possíveis.

Os personagens de Mistura... são desvalidos, “gente de rua e de morro”, restos que emperram o bom funcionamento da máquina de criar desigualdades. São principalmente mulheres, que, desde crianças, apanham da polícia, são presas e assassinadas pela repressão, estupradas em táxis; ou, ainda, achando-se “peitudas e gordinhas”, tomam chá-de-cadeira nos bailes da juventude. Lembram, em singeleza, Macabéas e Miguilins em cenários próximos da selvageria da urbe e do campo. Rio de Janeiro e Minas Gerais. Indo além, como não mencionar a poética de François Truffaut em A pequena ladra ou em 400 golpes?

E justamente por serem talhadas como imagens poéticas, imagem e escrita cumprem sua função de desrealização dessa realidade, bem como sua realização em novas bases, em outro nível, tocando o real, no aqui e agora: apesar de morrerem por overdose de merda (que merda? Escolha o leitor, a este é dado o direito de escolha). Apesar de tudo, os personagens dessa mistura escolhem correr atrás do sonho, tecendo e bordando inusitadas realidades.

Já o narrador, em diversos momentos, confirmando a fineza do título, levanta-se com elegância, esbraveja e vibra, conversando com o leitor sobre o narrado, sobre o tempo e o amor. Conferindo alguma unidade aos contos, marcados por sua manifestação discreta, mas visível, o narrador, seguindo as palavras da autora, “conta e desconta” apenas para poder “contar o imprevisto”, realizando, com isso, o que toda boa literatura é capaz: tornar possível outra cena, outro modo, outras palavras...

Pura deriva, como quer a autora. Mas também puro retorno, pois, ao criar suas idas e vindas da vida que se vinga brincando, seu texto faz voltar e pensar, ou recriar outras formas de vida. Capaz de inscrever em nossos muros, em nosso tempo, uma vez ainda: “A imaginação toma o poder”. E o sexo da noite sorri, agradecido.

Patrícia Carmello é professora e pesquisadora de literatura pela UFMG

Mistura Fina
• Vera Casa Nova
• Editora 7Letras
• 76 páginas, R$ 34

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