Livro narra drama vivido por irlandesa tendo como cenário a disputa entre católicos e protestantes

Num ritmo seguro, que prende o leitor do início ao fim, o livro de Sebastian Barry 'Os escritos secretos é narrado por duas vozes que se alternam

por Carlos Herculano Lopes 24/08/2013 00:13
Linda Brownlee/divulgação
Dramaturgo e romancista, Sebastian Barry é autor atento à complexidade da condição humana (foto: Linda Brownlee/divulgação)
Na pequena cidade de Sligo, na Irlanda, a jovem Roseanne despertava a atenção por sua beleza, que a destacava entre as moças da região. Filha de pais humildes, acabou conseguindo emprego num restaurante, onde conheceu um rapaz de família abastada. Casaram-se e ele lhe deu o sobrenome MacNulty – contra a vontade da família, que não apoiava a união pelo fato de a moça ser considerada “de classe inferior”. Depois do casamento, um incidente – do qual Roseanne não teve culpa – acabou por transformar sua vida em verdadeiro inferno. Quando nada mais lhe restava, foi levada para o hospital psiquiátrico. Passou a viver no anonimato, como uma deserdada social qualquer, sem direito sequer a sonhar.

 Quase aos 100 anos, Roseanne vê o governo decidir fechar o hospital. O encarregado de cadastrar os internos era o doutor Grene. Caberia a ele decidir quem poderia ser reintegrado à sociedade ou transferido para outro local. Quase por acaso, o médico passou a se interessar pelo caso de Roseanne. Às vezes, mesmo sem poder, passava horas conversando com ela. Queria saber da sua vida, de seu passado e das razões que a levaram a estar ali. Algo inexplicável, mas muito forte, ligava os dois.

 Num suceder de acontecimentos envolvendo várias pessoas, doutor Grene descobriu os escritos de um padre local. Sob o ponto de vista de um homem conservador, o religioso relatava a história de Roseanne, a quem não fez concessões nem ofereceu a possibilidade de perdão. Afinal, aquela senhora estava ligada a terríveis acontecimentos, que, aliás, deram o que falar na Sligo de antigamente. Aparentemente, a vida corria sem maiores novidades, embora, na intimidade dos lares, não fosse bem assim. Havia muitos segredos por ali.

 Sem que ninguém soubesse (nem mesmo o doutor Grene), Roseanne, às escondidas, registrava as memórias em seus escritos – segredos escondidos sob tábuas do assoalho do quarto do hospício.

O pano de fundo dessa história é a disputa entre católicos e protestantes que ensanguentou a Irlanda. Ligado a uma das facções políticas, o pai de Roseanne foi tragicamente assassinado na frente dela, ainda criança. A menina jamais conseguiu superar o trauma. A isso somou-se a senilidade da mãe, manifestada ainda na mocidade.

Num ritmo seguro, que prende o leitor do início ao fim, o livro 'Os escritos secretos', de Sebastian Barry, é narrado por duas vozes que se alternam: a de Roseanne MacNulty, por meio dos seus guardados secretos, e a do doutor Grene, que faz anotações a respeito de cada paciente antes de decidir se vai devolvê-lo “à vida lá fora”. Em alguns momentos, o médico não deixa de falar de si próprio, do falecimento da esposa, com a qual vivia um relacionamento conturbado, e da solidão. Grene faz descoberta inusitada, que mudará sua vida. Roseanne, não por coincidência, está diretamente ligada a essa transformação.

Nascido em Dublin, o irlandês Sebastian Barry é autor de várias peças encenadas com sucesso em seu país, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Os escritos secretos lhe deu o James Tait Black Memorial Prize – um dos prêmios mais antigos da Grã-Bretanha. Nesse ótimo livro, a condição humana é mostrada de forma tão crua que, em determinadas passagens, pode até nos parecer impiedosa ou simplesmente obra de ficção. Mesmo que a realidade, muitas vezes, consiga suplantá-la.

OS ESCRITOS SECRETOS

. De Sebastian Barry
. Editora Bertrand Brasil, 350 páginas, R$ 44

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