Identidade põe a mesa

Estudo sobre aspectos culturais do queijo de minas defende importância das formas artesanais de produção. Livro forneceu elementos para o tombamento do produto como patrimônio imaterial

por 17/08/2013 00:13
Rodrigo Clemente/divulgação
Rodrigo Clemente/divulgação (foto: Rodrigo Clemente/divulgação)
Walter Sebastião

“Sou roceira. O que está no meu livro é relato de alguém que tem origem rural e, assim, vê a tradição cultural mineira. Minha pesquisa não é um vasculhar intruso sobre a questão do queijo artesanal, mas um revisitar das minhas origens”, afirma Maria Coeli Simões Pires, autora de Memória e arte do queijo do Serro – O saber sobre a mesa (Editora UFMG). Não é texto diletante ou só pesquisa acadêmica, mas trabalho que nasceu em meio a uma guerra, que interditava a fabricação artesanal do queijo de minas por motivos sanitários. É da autora a fundamentação do relatório que solicitou o registro do modo tradicional de fazer queijos em Minas, como patrimônio imaterial, encaminhada em 2001 ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan). A autora é secretária de Estado da Casa Civil e de Relações Institucionais.

“O queijo merece respeito. Não podemos falar dele só como elemento econômico, apesar de esta vertente ser importante. O queijo é, para nós mineiros, sabor, qualidade, mas tem valor simbólico, de identidade. É referência cultural”, afirma Maria Coeli. “Peço a todos que valorizam o queijo, a cultura e história mineira que me deem um desconto por essa ousadia”, argumenta com bom humor. Lógico que tal argumentação, apresentada com voz calma, é declaração de amor ao queijo do Serro. E carrega ainda uma reivindicação mais geral: “Não podemos esquecer a Minas rural, embora muitas vezes ela seja menos enfatizada do que a urbana”, acrescenta a advogada, sem deixar de apresentar incômodo com abordagens históricas, para ela parciais, da vida, cultura e sociedade mineira.

“Nasci em fazenda. Sou filha de homem que tinha compromisso com o queijo, que se gabava de nunca ter deixado faltar queijo na mesa do mineiro. Pude vê-lo fazendo queijo todos os dias. Quase todos: na sexta-feira da paixão o leite era distribuído para a população”, recorda. “Sentir toda essa cultura ameaçada mexeu comigo. Tinha de fazer alguma coisa”, recorda. E, então presidente da Associação de Amigos do Serro, reagiu com o apoio dos irmãos. Cada um cuidando de um aspecto da questão, seja a organização dos produtores até a atuação na defesa jurídica do queijo do artesanal. “O que gostaria é que as pessoas observassem que o verdadeiro valor do queijo é imaterial, algo imensurável pelo que informa sobre nossa história, cultura e sociedade”, defende.

“Fiz livro cuidadoso mas sem o propósito de ser leitura científica”, acrescenta Maria Coeli. Desafio, como observa Ângela Gutierrez, que escreveu o prefácio, foi lutar contra a falta de literatura e documentos sobre tema. E está no volume, em anexo, entrevistas com queijeiros que ajudaram a suprir esta lacuna. “Como a informação era dispersa, me vali do fato de ser de família queijeira”, conta Maria Coeli, lembrando que era essencial situar o queijo e sua produção como patrimônio. Maria Coeli é formada em direito pela PUC Minas, doutora e mestre em direito administrativo pela UFMG e publicou Preservação do patrimônio cultural, trabalho pioneiro sobre o tema, com o enfoque jurídico. É também autora de Poemas e do romance O inquilino do tempo.

três perguntas para...

Maria Coeli Simões Pires
advogada e escritora


Em relação à cultura do queijo, o que já foi feito e o que ainda falta fazer?

Uma etapa vencida e extremamente relevante foi conseguir tombamento como patrimônio imaterial dos processos de fabricação do queijo. Não foi fácil levar a questão até esse patamar. Hoje, existem vários esforços para construir uma política de preservação e produção. Foi passo básico e não isolado. Está em processo de organização, no Serro, do Salão do Queijo, um espaço multiuso e museu aberto, que vai oferecer cursos e seminários. Mas a pesquisa científica precisa continuar. Uma grande frustração minha é não ver liberação do queijo feito em bancas e formas de madeira, aspectos que são do processo artesanal. As fazendas mineiras tem experiência muita tranquila de queijos sadios feitos em formas e bancadas de madeira.

Como vê a questão do patrimônio hoje?

Sinto que houve uma mudança de percepção e que, aos poucos, as pessoas vão se colocando na posição de direito à fruição do patrimônio histórico, ecológico e cultural. E, sentindo que o patrimônio é dele, tomam atitude de protetora. Essa linha de conscientização é importante, pois quando as pessoas se identificam com o patrimônio, permite-se criar uma linha de ação política. Mas é questão sempre desafiadora. Toda política de preservação tem de levar em conta os diversos atores envolvidos na questão – o poder público, os proprietários, a sociedade. Cuidar do patrimônio, se queremos uma ação mais efetiva, é vigilância compartilhada.

Ainda é utopia proprietários colaborando com a proteção do patrimônio?

A relação com o proprietário é ponto delicado, de conflito na relações de tombamento. Conseguir um meio termo entre o respeito a propriedade, consideração pela importância de um imóvel e o direito a fruição não é simples. O proprietário precisa saber que é guardador de um bem que, pelo que representa, é importante para os outros. Compreender isso não é uma utopia, é uma forma civilizada de entender a relação com um bem. Com essa ideia conseguiu-se recuperar muita coisa.

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