Jornais viram notícia

Mais que uma mudança essencialmente técnica, o que se desenha é uma transformação social, com efeitos políticos importantes

por João Paulo 17/08/2013 08:00
Emmanuel Dunand/AFP
Jeff Bezos criou um modelo de negócios que passou por cima do mundo real e agora quer vender passagens para voos no espaço. O Post é seu novo brinquedo (foto: Emmanuel Dunand/AFP)

De pedra a vidraça. Responsável numa sociedade democrática por garantir o espaço de debate, informação e desenvolvimento da opinião pública, o jornalismo se tornou ele mesmo um elemento de disputa política. Nas últimas semanas, fatos relativos à produção, circulação e economia da notícia puseram os jornais e revistas na linha de frente das discussões públicas. Da venda do Washington Post ao dono da Amazon, Jeff Bezos, à emergência da comunicação em rede colaborativa proposta por coletivos como o Mídia Ninja, passando pela reformulação do leque de publicações de revistas no Brasil, com o sintomático fim da publicação cultural Bravo!, da Abril, muita tinta e pixels rolaram por papéis e telas do país.

Não se pode falar propriamente de uma revolução, já que se trata de eventos que vêm sendo preparados numa linha de tempo já nem tão nova assim. Por isso o entendimento das transformações pelas quais passa o ecossistema da informação exige não apenas abertura ao novo, mas atenção direcionada ao contexto histórico, político e econômico no qual se dá a produção, distribuição e aproveitamento das informações na sociedade contemporânea. Mais que uma mudança essencialmente técnica, o que se desenha é uma transformação social, com efeitos políticos importantes.

Frente a qualquer processo da mesma natureza, que altera padrões e paradigmas, a tendência tem sido forçar uma falsa divisão entre partidários da mudança, que se alinhariam entre os progressistas, e os resistentes às transformações, que comporiam o grupo dos tradicionalistas. A dicotomia, que não é boa em política, é pior ainda em matéria de dinâmica social.

O que se acompanha hoje não é a vitória de uma alternativa técnica que tem tradução econômica – a hegemonia do digital –, mas a criação de um novo ambiente, no qual categorias clássicas têm pouco a contribuir. O jornalismo, que se aperfeiçoou durante décadas para entender a realidade das democracias complexas, talvez não seja o melhor instrumento para compreender sua própria virada histórica. Por isso estão em crise. Por isso estão perplexos. A avaliação do novo cenário pode ser perpassada de pessimismo paralisante ou de otimismo eufórico. Para uns, adentramos no pior dos mundos possíveis, para outros, no limiar do novo tempo.

Inferno - A primeira reação tem sido sempre a recusa da novidade e a tendência a criticar o novo em favor de práticas históricas. O argumento não é apenas reativo, já que traz em si alguns elementos que merecem ser destacados. No caso da venda do Post, tem sido percebido um preconceito que se dirige mais para o modelo de negócio que para o jornalismo em si. O fato de o jornal americano que derrubou Nixon ter sido comprado por um comerciante que mudou a ecologia dos negócios na rede empurra a questão mais para o campo do dinheiro que da informação. Assim, Bezos seria o executor e acelerador de uma profecia, que vem se arrastando nos últimos anos, sobre o fim anunciado do jornal impresso. O que parece ser uma opção de mercado se revelaria, no entanto, para os críticos, com o fim de uma era em que o jornalismo se balizava mais pelo interesse público que pelos resultados financeiros. Além disso, segundo ainda os críticos do empresário, o jornal serviria de trampolim para suas pretensões políticas, sobretudo no terreno da economia, em direção a certo ultraliberalismo, já que Bezos tem alergia a impostos e regulações.

No caso da Bravo!, o pessimismo assume outra cara. Com o fim da publicação – e a manutenção de títulos ligados à fofocas e à forma física no cardápio da editora – o que estaria se estabelecendo é um cenário de superficialidade. Sai a alta cultura e entra em seu lugar o entretenimento. A perda da substância cultural propriamente dita, no caso do jornalismo, estaria na troca de certo papel formador e filosófico pela lógica do espetáculo. Assim, como se percebem em grande parte da imprensa no mundo, os temas da cultura estariam sendo substituídos por assuntos que responderiam pela chancela de “gente”, “celebridades” ou “diversão”, com seus conteúdos reforçadores da relação não mediada entre desejo e prazer. O signo por excelência da importância de um produto cultural seria dado por sua capacidade de atrair atenção em termos de mercado. Cai fora a profundidade estética com seu potencial crítico e assume o trono a lógica da coluna dos “mais vendidos”. Nos dois sentidos. Mais que a capitulação de uma revista, trata-se de uma tendência que alcançaria quase todos os produtos jornalísticos, que apequenam suas seções culturais e incensam marcadores de mercado e celebridades vazias.

Já no caso das redes colaborativas de informação, no padrão da Mídia Ninja, a avaliação negativa se dá sempre de forma comparativa. Os novos atores informativos não seriam capazes de produzir uma visão ordenada de mundo, criando com sua sede de imediaticidade uma balbúrdia cognitiva. O papel até então ocupado pela chamada grande mídia sempre foi o de ordenar, com responsabilidade, os vários discursos emanados da sociedade, que ganhariam um tratamento que, na falta de melhor nome, poderia ser chamado de “inteligência jornalística”. Na mão e na cabeça de profissionais preparados, a realidade ganharia uma leitura que daria ao cidadão a possibilidade de se localizar no jogo de interesses que caracteriza cada momento. Um instrumento para a tomada de decisões. Há, por trás dessa crítica, certa concepção iluminista de verdade, herdeira do projeto da modernidade, que daria ao jornalismo sério o papel de mediador informado. As redes colaborativas, com sua novidade e capacidade de arregimentar novos discursos, seria incapaz do momento da síntese. Para os críticos, que representam um certo modelo solar de informação (no qual a verdade é uma luz absoluta que irradia a espera do ordenamento racional), nem todo fato é informação; nem toda informação é notícia; nem toda notícia é verdade.

Paraíso - No campo oposto estão aqueles que veem no momento atual a saudável quebra de expectativas e o apontamento de novas formas de jornalismo, muito mais capazes de responder às provocações da realidade. Assim, a configuração empresarial que se antevê para o Post passaria necessariamente por um novo modelo de negócios. Desde que a internet se tornou a mídia mais poderosa do mundo que a questão de como tornar os jornais rentáveis se coloca como uma esfinge devoradora. O que é fato é que hoje a maior parte da informação circula em meios digitais, e não em papel. O que falta não é fazer a transição de uma mídia para outra – o que é inevitável e mera questão de tempo –, mas descobrir como sustentar um bem público valiosíssimo, a informação livre, num meio ainda arredio aos elementos basilares do capitalismo de mercado. Bezos inventou uma nova relação entre mercado e consumidor de bens materiais, eliminando parte da cadeia. Levar esse impulso ao mundo dos bens simbólicos, sem se deixar submeter pela lógica da quantidade e do prazer imediato, é o desafio que deveria unir homens de negócios e jornalistas. Enquanto uns forem os vendidos e os demais os puros, os dois perdem.

Com relação ao jornalismo cultural, o que parece voltar à cena é a antiga díade entre cultura e indústria cultural. Em defesa do primeiro termo estão criadores e especialistas formados no campo da chamada alta cultura, que defendem o potencial criativo e crítico das produções artísticas. Do outro lado, sem cair, é claro, no populismo que nivela por baixo, os defensores da arte que dialoga com as expectativas de seu tempo e com um mercado livre. O modelo da cultura tradicional, além de potencialmente elitista – o que em si não é um mal – se manteria como certa reserva ecológica em meio a várias possibilidades democráticas de expressão estética. Com isso, o fim de publicações especializadas talvez apontasse para necessidade de incorporar as pautas culturais no meio de outras demandas informativas. Além disso, argumentam os defensores da cultura de mercado, é mais saudável a explosão do cânone, ainda que pulverizando as atenções, do que a manutenção de certa política judicativa que o tempo todo aponte o dedo para o que é e o que não é cultura. O próprio modelo de financiamento público ganharia mais eficiência se voltasse sua atenção para a diversidade em vez de apenas sublinhar, com mais ou menos ênfase, a tradição dos barões da alta cultura, cegas e surdas aos desejos estéticos de uma sociedade plural e em transformação.

No que diz respeito à informação em rede, em sua guerrilha contra o jornalismo tradicional, o cenário seria igualmente promissor. A revolução digital não mudou apenas a técnica de produção e distribuição de informação, mas a própria sociedade. Modelos fundamentados em antíteses como centro/periferia perderam a razão de ser. Não há mais periferia, tudo é centro. Essa revolução criou ainda a possibilidade de vocalização direta dos sujeitos sociais, sem que tudo tenha que passar pelo crivo da lógica empresarial e política das instituições jornalísticas. O poder de informação se mostrou, além de tudo, como gêmeo da força convocatória do protagonismo social. Com isso, mais que o espaço de veiculação, o tempo se tornou a variável mais importante. Com a pulverização e instantaneidade da informação, o ambiente informativo mudou em quantidade e qualidade. Em números, os agentes de informação foram multiplicados aos milhões, bem como os receptores, que estavam excluídos pela lógica geracional e de classe dos grandes meios. Em essência, deixa de valer a teoria solar para entrar em cena a lógica fractal do espaço infinito, em que cada informação interfere na outra e convoca a participação do receptor. O diálogo deixa de ser uma conseqüência para ser um operador social. A cobertura recente das mobilizações sociais no Brasil deixou nítida a força do novo modelo e seu potencial de não apenas reportar a realidade, mas interferir nos seus rumos.

Mundo real
- Os dois lados apresentados acima, possivelmente, têm sua cota de razão. No entanto, mais que desfiar argumentos – que podem ainda incorporar elementos como queda de circulação, o papel do jornalista, a tendência ao amadorismo, a censura, a vigilância tecnológica, a invasão de privacidade, os modelos de rentabilidade, a superficialidade, a perda de referencial público etc. – cabe ao cidadão perceber seu papel nesse jogo. A imprensa não é mais mesma e o consumidor de informações não pode mais ser passivo. Cada escolha ajuda a moldar o futuro que se desenha no presente.

Mas há elementos que fazem parte do mundo real e dos quais não vamos nos livrar nunca mais, seja pelo mergulho gozoso no paraíso ou nas antecâmaras do inferno. Os jornais não se sustentam mais no antigo modelo de negócios; a cultura é território de disputas filosóficas, políticas e econômicas; as mídias colaborativas podem não tomar o poder, mas não vão sair da praça.

A isso se somam ainda outros paradoxos poderosos. Nem sempre, por exemplo, mais informação significa informação melhor. Por outro lado, a antiga garantia que vinha carimbada pelos grandes meios de comunicação perdeu o prazo de validade. A imprensa, na última década, mostrou que é capaz de ultrapassar qualquer limite em nome de interesses do mercado e do Estado. E o limite intransponível da imprensa deveria ser a verdade. Em matéria de imprensa valeria tudo, menos mentir.

No entanto, os grandes jornais, revistas e redes de TV mentiram em relação à economia (criando um consenso que quase quebrou o mundo) e à política, compactuando com a chamada guerra ao terror, repercutindo falsidades (como a existência de armas de destruição em massa no Iraque), além de censurar conteúdos de interesse público (como a afronta aos direitos humanos em Guantánamo). Quando a “grande imprensa” mente e censura, deixou de ser grande e de ser imprensa.

O deserto do real, no entanto, precisa ser noticiado. Como fazê-lo de forma livre e democrática – e que dê um dinheirinho no fim do mês – é o desafio. Quem souber a resposta está rico. Quem não se importar com a pergunta está fora do jogo.

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