Resultado do Programa Mais Médicos confirmou a participação de menos de 1 mil profissionais

Programa vem gerando polêmica desde seu anúncio e já passou por várias discussões até assumir o formato atual

por João Paulo 10/08/2013 06:00
Juarez Rodrigues/EM/D.A Press
Cena de manifestação de médicos realizada em Belo Horizonte (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
O resultado anunciado esta semana do Programa Mais Médicos, do Ministério da Saúde, confirmou a participação de menos de 1 mil profissionais no programa. Foram 938 selecionados para preencher a necessidade identificada de pelo menos 15.460 médicos, que serão encaminhados para 404 cidades – a previsão era atender 626 municípios. As vagas estão localizadas nas periferias de metrópoles e em regiões com poucos profissionais e em situação de extrema pobreza.

O baixo número de médicos brasileiros interessados e aptos para participar do programa, apenas 6% do necessário, abre agora segunda fase da seleção, que vai receber inscrições de profissionais de outros países interessados em trabalhar no projeto por três anos, com bolsa de R$ 10 mil. Os médicos estrangeiros não precisarão validar os diplomas e serão encaminhados às mesmas áreas recusadas pelos colegas brasileiros.

O programa vem gerando polêmica desde seu anúncio e já passou por várias discussões até assumir o formato atual. Antes, o governo chegou a anunciar o aumento do tempo de formação do médico em dois anos, que seriam dedicados ao exercício em unidades do Sistema Único de Saúde. O programa atual ganha tempo, já que os profissionais começam a trabalhar em setembro, e abre perspectivas para residência em saúde básica de forma massiva, o que deve impactar todo o processo de formação do médico, hoje excessivamente especializado.

Entre as críticas apresentadas pelas entidades médicas estão a abertura aos profissionais estrangeiros sem comprovação da qualidade da formação deles e a contratação de médicos em locais sem condições ideais de trabalho. O Mais Médicos, no entanto, foi direcionado em sua primeira fase apenas a profissionais nascidos no país e o baixo índice de preenchimento das vagas mostra que não existe interesse dos brasileiros em ocupar os postos oferecidos. Com relação aos médicos estrangeiros (não apenas e nem majoritariamente cubanos, como se propagou a princípio), passarão por treinamento e supervisão a cargo de universidades brasileiras.

No que diz respeito às condições de trabalho, não se trata de um problema a mais, mas do problema em si. É exatamente porque é impossível garantir todas as condições tecnológicas a todas as unidades de serviço que é preciso hierarquizar a atenção à saúde. Não se trata de oferecer saúde pobre para pobre, mas de prover a maioria das demandas de saúde – segundo a Organização Mundial de Saúde, 80% dos cuidados são resolvidos no âmbito da atenção básica – para a maior parte da população. Os profissionais, além do atendimento a problemas reais que afligem a população, seriam agentes de informação e encaminhamento para os outros níveis de complexidade, hoje entregue à ambulancioterapia eleitoreira.

Os 14.522 postos em aberto nessa primeira fase chamam a atenção para as resistências das entidades classistas e profissionais. Afinal, que propostas elas oferecem ao país para saldar essa dívida, que, é bom que se diga, ainda é bem abaixo das necessidades reais do país? A defesa dos interesses da corporação, um princípio legítimo numa sociedade democrática e plural, precisa ser articulado com outros valores, tendo como horizonte os interesses de toda a sociedade.

Mesmo com falhas, o Mais Médicos é a primeira ação direta a enfrentar a falta de médicos nos rincões rurais e urbanos, sem apelar para propostas de médio e longo prazo (como a reforma curricular dos cursos médicos, quase sempre recebida como ingerência à liberdade universitária) ou para mecanismos de mercado. Esses, de forma perversa, criaram a ciranda de salários entre prefeituras pobres em sua tentativa de organizar seus sistemas de saúde em moldes quase sempre centrados na atenção individual e na atuação de um único profissional, o médico.

Ato e fato 
O trabalho indispensável dos profissionais médicos gerou, ao longo do tempo, um campo muitas vezes impermeável às políticas de saúde pública, criando até mesmo disputas em torno de procedimentos exclusivos da categoria, sem respaldo técnico ou científico. A recente discussão do ato médico evidenciou a separação entre a defesa corporativa e as necessidades do cidadão atendido pelo serviço de saúde. Se aprovado, sem vetos, o projeto reduziria o espaço de atuação de vários profissionais, sem a contrapartida de oferta dos serviços. É preciso sempre destacar que quando se fala em médicos se cria uma generalização, que expressa a opinião das entidades representativas, mas que não pode ser imputada ao grande contingente de profissionais dedicados à saúde pública.

Ainda há muito a ser feito na área de saúde. É evidente que o Programa Mais Médicos não é panaceia. É preciso regulamentar o índice de investimento da União no setor (a proposta histórica é de 10%, frente a 12% dos estados e 15% dos municípios) e garantir que recursos sejam bem utilizados. É necessário ainda aumentar o número de vagas nos cursos de medicina, ainda muito abaixo do padrão internacional, criando caminhos de especialização no âmbito da saúde pública e da atenção primária. A recente discussão da PEC sobre a atuação dos médicos militares no SUS é um bom exemplo de atualização de procedimentos legais em favor da realidade social. Sem falar nos vários projetos setoriais, carentes de atenção em termos financeiros e políticos, que correm o risco perene da reversão (como se acompanha no âmbito da saúde mental, cada vez mais permeável ao ataque da psiquiatria biológica e da indústria de medicamentos).

A engenharia do Sistema Único de Saúde, na soma de princípios fundamentais (universalidade, equidade e integralidade) e organizativos, entre os quais se encontram as propostas do Mais Médicos, estabeleceu-se no Brasil a partir de uma situação muito complexa do ponto de vista social. Temos um sistema que expressa a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, que convive com práticas de mercado, que deveriam ter função complementar e acabam por assumir vertente competitiva, inclusive de recursos.

Não somos nem Canadá nem EUA – dois exemplos radicais de opção pelo direito e pelo mercado no campo da saúde –, mas precisamos ficar com o melhor dos dois mundos, tanto em provisão de serviços quanto em eficiência. Corremos o risco, entretanto, de usar um diagnóstico de ordem social, que aponta a falta de médicos em determinadas realidades, e mesmo assim buscar tratamento para outro sintoma, optando por um modelo liberal de atenção, baseado no individualismo e na intensividade tecnológica.

O Brasil deve muito a seus médicos. E é exatamente em nome dessa dívida que a situação precisa ser mudada. A melhor distribuição de profissionais, a equidade na provisão de serviços, a universalização real do atendimento, a hierarquização da atenção, a integralidade da concepção de saúde, tudo isso caminha para um cenário em que a população deverá ser mais bem atendida em seu corpo físico e mental. Deixando que as questões corporativas fiquem, como devem ficar, para o âmbito do mercado e da economia profissional.

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