A terra debaixo dos pés

A escritora carioca Rita Moutinho mostra domínio técnico e estilo próprio ao misturar poesia e psicanálise em seu novo livro, Psicolirismo da terapia cotidiana

por 03/08/2013 00:13
Bruno Veiga/divulgação
Bruno Veiga/divulgação (foto: Bruno Veiga/divulgação)
André di Bernardi Batista Mendes

Com o título inspirado em uma obra de Freud (Psicopatologia da vida cotidiana), Rita Moutinho acaba de lançar o livro Psicolirismo da terapia cotidiana. Essa poeta carioca promove a transformação da própria psicanálise em poesia. Com amplos gestos de coragem e generosidade, a escritora busca, por meio de sua poética e de um estilo marcante, usar a literatura como “arma” para alcançar uma espécie de “cura”.

O livro é dividido em quatro partes, que representam os diferentes estágios de uma terapia: “Tempo nublado”, “Tempo instável”, “Tempo parcialmente nublado, passando a límpido” e “Céu quase limpo com clarões no horizonte”.

Rita Moutinho viaja com segurança pelos versos livres até os sonetos, quando explora, como quem brinca perto do lúdico, todo o potencial do verso, da palavra, que também é signo, que é também chama, fogo, paixão. Ela explora os abismos, que remetem ao grande medo, que remetem à perdição e ao desamparo. Nesse sentido, duas “ferramentas” se juntam, a psicanálise e a poesia, para misturar todos os elementos, vida e morte, os claros e principalmente os escuros de uma alma para formar o todo contínuo, entrelaçado de coisas da vida e do cotidiano, que molda e transforma o fazer poético – e a vida – de Rita Moutinho.

Rita tem, ou construiu, relação muito próxima com a palavra, como demonstra neste verso, que é pura música: “Eu tentei costurar diversos panos/ de texturas e cores diferentes,/ mas tinha como agulhas alfinetes/ e não se davam pontos, mas espantos./ ‘Costurei’ sedas, lãs e musselinas,/ quis unir algodão, chintz, cetim,/ coser fustão com um fino organdi,/ unir chita, tergal e casimira./ Eu queria coser um quente manto/ que mandasse ao desterro dores frias/ e queria ter colcha colorida/ pra cobrir sonhos maus cheios de danos./ Mas só tinha alfinete pra costura/ e ao invés de tecer, fiz atadura”.

A escolha das palavras é um processo de fundamental importância para a poesia. Em vez de curativo, a poeta forja atadura, que indica e ressignifica dores e danos. Forma e conteúdo, fluxo e contenção rumo a um sentido amplo. Sua poesia sugere clarezas, claridades. A arte não serve para nada: não há maior mentira. Rita mostra que a poesia serve, sim, serve muito para a construção de alicerces, a poesia serve de bálsamo, como sempre soube Mario Quintana: “Quem faz um poema abre uma janela./ Respira, tu que está numa cela/ abafada,/ esse ar que entra por ela./ Por isso é que os poemas têm ritmo/ – para que possas profundamente respirar./ Quem faz um poema salva um afogado”.

Rita, com apenas uma bala na agulha, no começo não sabe sequer se porventura existem alvos. Se há nuvens, o tempo é nublado, de tempestades. Aos poucos, o barco, sem mares e carente de águas, começa sua aventura de buscas, de cais, dentro do instável. Daí para o parcialmente nublado; até os clarões no horizonte. Vida é sinônimo de périplo. Ser poeta é “estar pronto para os relentos”, num andamento de “arborizar as pedras”. Coexistem potências naturais que tanto assustam quanto libertam.

A rima pode, em alguns casos, tornar-se camisa de força para o poema, quando o poeta tem apenas método e técnica, dentro de procedimentos bem arrumados, cheios de razão. É raro aquele poema que surge livre, e é bom ver surgir aquela rima que brinca de ser irmã da palavra gêmea.

Rita Moutinho, na maioria das vezes, reúne técnica e sentimento com o apuro dos melhores mestres, na desmedida exata, apesar de alguns poucos poemas desandarem na empolgação de um sentimento que é apenas desabafo e ensaio para voos maiores.

Rita é dona de uma retórica e de uma eloquência cheias de garbo e elegância. Ela diz sobre o que não sabe, num processo bonito de esforço e procura.

A poesia organiza, faz balançar a copa das árvores, inventa cores para quadros e empresta sentido para pedras. A poesia é generosa em sua essência de cios, com seu núcleo feito de lirismo. A primeira página de Psicolirismo da terapia cotidiana é borrada de verde, que já é silêncio, de farta esperança. Também é verde o fim. Se há mensagens, e a poesia é signo de mensagens, Rita aponta para a sua verdade, uma verdade feita de símbolos, encontros e muitos desencontros, de cadeados e portas que se abrem, às vezes. Toda alma é límpida, mesmo que ande forrada de sombras.


Soneto que reitera o pedir um tempo


Parece que o trem não sai da estação,
não apita o navio preso ao cais.
Aviões? Só uma carroça sem tração
me conduz solfejando muitos ais.
Parece que está longe o nono mês,
que o outono não produz polpa na fruta.
A análise, com sono e flacidez,
parece uma empreitada sem labuta.
Você tenta pintar cenas bucólicas
(só falta me fazer sentir pastora!)
e, provocando em mim cruentas cólicas,
diz-me: “Querida, estás na incubadora.”
    Quero um tempo, avaliar a terapia
sem apartes de vossa senhoria.
Impaciente, aflita
com a hemorragia
de minhas alegrias,
me distancio da análise.
Dúvidas se inscrevem
no presente,
e preciso viajar sozinha.

Viagem interna,
levando a alma
como lanterna.

PSICOLIRISMO DA TERAPIA COTIDIANA

. De Rita Moutinho
. Ateliê Editorial, 194 páginas, R$ 46

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