E-book do jornalista Alberto Villas reúne crônicas sobre os prazeres do anacronismo

Objetos de prazer tragados pelo tempo, como o Crush e os elepês, resistem à ditadura do esquecimento

por Victor da Rosa 27/07/2013 00:13
Em “Dezembros”, crônica sobre como era o Natal de sua infância, Alberto Villas conta que tudo começava quando seu pai descia do sótão com vários caixotes cheios de coisas: personagens do presépio, bolas de árvore, enfeites variados e discos de vinil com canções natalinas. Os objetos vinham forrados com páginas de jornais velhos, trazendo notícias de um ano atrás, que eram lidas sempre com diversão, apesar de empoeiradas – no caso, tanto as páginas quanto as notícias. Em outra crônica, “Nem morto!”, agora sobre o medo que não temos mais dos mortos, Villas diz que seu pai – ele, mais uma vez – cultuava a prática de catalogar o nome dos conhecidos que morriam, de A a Z, em um caderninho preto.

As crônicas de Alberto Villas, originalmente publicadas no site da Carta Capital e agora reunidas no e-book com o nome sugestivo de The book is on the table, poderiam ser imaginadas assim: páginas amareladas de um jornal, espécie de catálogo com o nome dos mortos. Isso porque Villas escreve não sobre a última novidade ou a polêmica da semana, e sim a respeito daquilo que está prestes a desaparecer ou já desapareceu, como a banana split das Lojas Americanas e o refrigerante Crush – que, salvo engano, ninguém com menos de 30 anos conhece. O charme de suas crônicas, em grande parte, está nessa espécie de anacronismo. E o nosso prazer, como leitores, poderia também ser comparado ao daquelas crianças que, ao desempacotar os enfeites de Natal, divertem-se com as notícias de um ano atrás.

Alberto Villas não chega a ser um saudosista. Na verdade, bem, é um pouco. Só que se trata de um saudosismo mais ou menos conformado, feliz. Villas sabe que, em muitos casos, não tem volta. A prática de escrever cartas, por exemplo. A pergunta do título de uma das crônicas, “Quem ainda escreve carta?”, é respondida sem qualquer cerimônia logo na primeira linha: “Ninguém!”. Além dos e-mails, Villas não parece disposto a abrir mão de ler jornal no iPad e tirar dinheiro no caixa eletrônico – “mesmo com o saldo negativo”. Há outras necessidades mais discutíveis, como é o caso de alguns de seus amigos que não conseguem mais viver sem “arroz parboilizado, suco em caixinha, polpas de frutas congeladas, frango resfriado, bolo pronto e queijo fatiado”.

“Virando o disco”, por isso, é uma das crônicas que dão a chave do livro. Alberto Villas fala sobre a época em que resolveu vender sua coleção de discos, que contava não com 500 unidades, mas com aproximadamente 10 mil – em resumo, a história da música ocidental de Deus aos nossos dias. E vendeu. Foi com um frio na barriga que o cronista telefonou para Messias (era o nome do dono de um dos maiores sebos de São Paulo) e esvaziou uma parede inteira de sua sala. Mais de 20 anos depois, dono de uma coleção de CDs ainda maior e vítima de recorrentes pesadelos com “o bom e velho Messias”, Villas está seduzido pela ideia de armazenar tudo dentro de “um aparelhinho do tamanho de uma caixa de fósforos” – inclusive o CD de João Gilberto Chega de saudade. Salvo engano, nenhum saudosista convicto seria capaz de se desfazer assim, em troca de um frio na barriga, do primeiro disco do Ronnie Von.

Biscoito de nata Como o leitor já deve ter notado, o pai de Villas, “um cara que não amava os Beatles e os Rolling Stones”, é um personagem recorrente neste livro. Em “Todo tempo é bom”, especialmente, seu pai é retratado, ele sim, como um saudosista clássico, como alguém que despreza profundamente o rock, não troca o nó da gravata de Nelson Gonçalves pelas obras completas do Jimi Hendrix e vivia repetindo que, para bater um papo com John Lennon, só se ele cortasse o cabelo, fizesse a barba e tomasse um bom banho. Ora, seu pai gostava mesmo era dos carrinhos de madeira que ele próprio fabricava e de biscoitos de nata. Villas, de sua parte, que hoje não esconde uma “saudadezinha” de Beto Rockfeller, também confessa que adora Karina Buhr e Marcelo Jeneci. O que pensará nosso cronista de seu livro sendo publicado exclusivamente como e-book?

Se o pai é um personagem recorrente em suas crônicas, os filhos, na outra ponta da vida, também são – um dos filhos, ainda criança, é tema de uma deliciosa crônica sobre a “extinção do urso panda”, talvez uma das melhores, quando o saudosismo torna-se pura farsa, comédia. É como se o olhar dos filhos, por assim dizer, calibrasse o de Villas – é uma das filhas quem sugere ao pai armazenar sua coleção de CDs em um aparelhinho. De resto, nem todas as crônicas do livro devem ser lidas por meio da chave do saudosismo, mesmo aquelas que tratam de assuntos que envolvem o passado, como é o caso de “Histórias reais do dinheiro”, lembrança de como se lidava com as cédulas no tempo dos cruzeiros, e também as crônicas sobre sua suposta velhice.

As crônicas sobre velhice, aliás – penso especialmente em “Coisas de velho” e “Terra de cego” –, acabam por explicitar o método de escrita mais importante do livro: as listas. “Velho gosta de fazer listas. Mesmo não tendo nada pra fazer durante o dia, ele tem sua lista de afazeres”, escreve Villas, que recentemente passou dos 60 anos. De fato, as duas crônicas são repletas de listas, fazendo do próprio tema a sua forma de escrita. “Coisas de velho”, por exemplo, consiste em uns 20 sintomas de velhice, dentre os quais estão incluídos: quando esquece sistematicamente a água fervendo no fogão; quando deixa um talão de cheques inteirinho assinado para alguma emergência; e quando entra de óculos no chuveiro para tomar banho. Esse último item, finalmente, é o tema de “Terra de cego”, que nos proporciona, por sua vez, uma lista surpreendente de xampus das “três mulheres da casa”.

Sopa Há uma série de crônicas cujo cenário é o supermercado, esse espaço bizarro, embora naturalizado, do capitalismo contemporâneo. Em todo caso, trata-se sempre de uma metonímia: não estamos falando apenas do supermercado, mas da vida. Em “Vou-me embora pra Cotia”, Villas nota que a prateleira das guloseimas geralmente é exposta ao lado das revistas de saúde, que anunciam: “Perder cinco quilos vai ser sopa”. Justamente a sopa é o assunto de outra crônica, em que Villas descreve a arriscada experiência de preparar, com a ajuda do tradutor do Google, uma sopa comprada em Berlim. Em oposição aos supermercados contemporâneos, não poderiam faltar os armazéns antigos, quando era mais comum deixar placas penduradas no vidro com recados aos clientes, assunto de “Tem mas acabou”.

Soma-se a isso, finalmente, outra qualidade de sua memória: o pormenor. Em crônica sobre um amigo de seu pai, Villas lembra o modelo de seu relógio Mido; a respeito do ano de 1972, o cronista escreve que “era um tempo em que lambíamos a cola do selo nas agências do correio”; ao descrever a placa de “Fiado só amanhã” do armazém do Chaim, no tempo em que Villas ainda usava calças curtas, ficamos sabendo que “a plaquinha escrita à mão ficava dependurada na balança Filizola vermelha”. Dessa maneira, pela riqueza documental, muitas vezes temos a impressão e o gosto de uma crônica escrita não hoje, mas na época, só que com um olhar retrospectivo. Nada mais contemporâneo. Afinal, o que Alberto Villas faz, hoje em dia, é nos dar notícias sobre os dias contados.

Victor da Rosa é formado em letras, ensaísta e mantém o blog notíciasde3linhas

MAIS SOBRE PENSAR