Muito além de médicos e hospitais

por 27/07/2013 00:13
Maria do Socorro de Souza

 JUAREZ RODRIGUES/D.A PRESS - 3/7/2013
Médicos protestam contra a entrada de colegas estrangeiros. No outro lado da discussão sobre a saúde pública, é tênue a linha que separa o corporativismo do interesse social (foto: JUAREZ RODRIGUES/D.A PRESS - 3/7/2013)

Há um quarto de século, o Brasil trabalha na construção de um sistema de saúde público, universal e de qualidade. Nas ruas, a população demonstrou que ainda estamos longe de atingir esse objetivo. Faltam médicos, medicamentos, hospitais e postos de saúde. A presidente do Conselho Nacional de Saúde, Maria do Socorro de Souza, afirma que, além de tudo isso, é preciso criar espaços democráticos para que a população possa discutir prioridades da saúde.

As recentes mobilizações, embora multifacetadas, por todo o país, apresentaram reivindicações por melhorias na prestação dos serviços públicos, com destaque para a saúde e a educação. As críticas que emergiram dos protestos das ruas na área de saúde são legítimas e aparecem em duas vertentes: uma é a da garantia do acesso, expresso no direito à saúde; a outra é em relação à qualidade das ações e serviços prestados à população. Este pleito é também do controle social, representado pelos conselhos de saúde em todo o país.

No Brasil, apesar dos avanços, ainda é preciso politizar o debate da saúde como dever do Estado e direito de todos os cidadãos, e, deste modo, fortalecer os espaços de participação e controle social. O momento agora é favorável para avançarmos no pleito das reivindicações, com estratégias que envolvam reformas políticas, sociais, econômicas e de desenvolvimento; e usar da força que temos do controle social, em sintonia com a sociedade.

O estado de saúde de cada um de nós está relacionado a um conjunto de determinantes que se interrelacionam e se influenciam. Nesse bojo, aparecem todas as questões sociais, muitas enfrentadas, porém, não respondidas, como a reforma agrária, a mobilidade urbana, as desigualdades sociais e regionais, as questões ambientais e as questões de gênero, educação, raça e etnias, que se revelam na fragilidade da proteção social. Então, a saúde se configura como problema social, com necessidades que precisam ser enfrentadas e respondidas.

Há 25 anos, construímos um ideário e partimos para a organização de um sistema de saúde arrojado e inovador, com princípios que apontavam para o acesso universal, a equidade, o cuidado integral e a participação popular. O Sistema Único de Saúde (SUS), em sua trajetória de implantação, incorporou e reproduziu problemas históricos da saúde brasileira, o que nos colocou diante da herança de um modelo centrado na figura do médico, na compra de serviços médicos e hospitalares de caráter privatista e na aquisição de medicamentos. Então, temos um sistema que nasceu de uma concepção bastante ousada e inovadora, mas que foi sendo implementado em uma estrutura de gestão arcaica e limitada. Este é um dos paradoxos no SUS.

Por um lado, o Brasil fez uma opção política para ter um sistema universal de saúde, um sistema público e republicano para responder às necessidades de saúde da sua população; por outro, não se ocupou suficientemente da construção dos caminhos políticos para estruturar, de forma sustentável, esse mesmo sistema.

Para superar essas heranças e deficiências, é preciso ir além de garantir mais recursos financeiros, apesar de esses serem imprescindíveis. Precisamos investir na politização do debate sobre a saúde; na construção e fortalecimento de políticas de atenção preventiva; no incentivo à adoção de modelos que priorizem a atenção básica como porta de entrada no sistema; e no fortalecimento de estratégias de redes, priorizando as ações de prevenção e promoção da saúde, além da regulação dos serviços prestados pelos planos privados.

Ressalta-se, ainda, a importância estratégica do controle social como essencial para fortalecer os conselhos de saúde nas três esferas de governo em seus dois pilares: a fiscalização e a construção de políticas públicas.

Há que se considerar a necessidade de ampliação e estruturação da rede pública de saúde e de uma política nacional de formação e valorização dos trabalhadores e trabalhadoras do SUS. Temos que qualificar os gestores da saúde e garantir a sua formação; politizar o debate da administração pública e investir em um modelo de gestão que tenha mais transparência, qualificação e corresponsabilização dos entes públicos e privados.

Enfim, para melhorar a saúde pública no Brasil, é preciso avançar juntos – gestores, trabalhadores e usuários – superando os modelos atuais de gestão e atenção à saúde, que não respondem mais às necessidades e exigências de saúde do povo brasileiro. Esses modelos precisam dialogar com a sociedade brasileira atual, que é diversa em termos de condições e situações sociais, culturais, econômicas etc. As conferências e as ruas evidenciaram essa diversidade: população idosa, negra, homoafetiva, rural, urbana, com deficiências e patologias, entre outras.

É fundamental defender a agenda da saúde como direito humano e de cidadania, ampliando o diálogo com a sociedade e opondo-se a projetos que comprometam direitos humanos; garantido acesso público e de qualidade ao SUS, com ampliação e estruturação da rede pública de saúde; entendendo a saúde como dever do Estado e combatendo a terceirização dos serviços assistenciais e a mercantilização da saúde humana.

É preciso garantir 10% das receitas correntes brutas da União para a saúde; estruturar uma política nacional de recursos humanos do SUS no âmbito do Ministério da Saúde, com foco na atenção básica; combater a corrupção e garantir transparência na aplicação dos recursos públicos, com a aprovação da Lei de Responsabilidade Sanitária e a estruturação de uma rede de ouvidorias e auditorias, além de estruturar e organizar os conselhos de saúde, compondo um Sistema Nacional de Participação Popular.

A sociedade grita nas ruas e não espera menos de nós.

. Maria do Socorro de Souza é formada em filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco e mestre em política social pela Universidade de Brasília. É presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), representando o segmento dos usuários.

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