O aviso já foi dado

Uma das principais cobranças feitas pelos protestos de junho foi a do fim da corrupção e da impunidade no uso dos recursos públicos

por Marcelo da Fonseca 27/07/2013 00:13
Marcelo Freitas

FÁBIO RODRIGUES/ABR -26/6/2013
Manifestantes que foram para as ruas em junho esperam respostas concretas para os problemas colocados. Mas há dúvidas quanto ao real interesse em implementá-las. Resposta poderá vir nas eleições do ano que vem. (foto: FÁBIO RODRIGUES/ABR -26/6/2013)

As multidões que, na segunda quinzena de junho, ocuparam as ruas das capitais e das principais cidades brasileiras querem mudanças. E mudanças já. Isso foi claramente expresso nos cartazes, nas faixas, nas palavras de ordem. Querem melhorias na educação, na saúde, na mobilidade urbana. Querem também a reforma política e o fim da corrupção. Não há dúvidas quanto ao que querem os brasileiros.

A dúvida é saber quando e com que velocidade o clamor das ruas vai se tornar realidade. Há também o reverso da medalha. Muitas mudanças, principalmente aquelas que tocam na forma como está organizado o sistema político brasileiro, podem não sair do papel. A dúvida é saber até onde será possível avançar.

Nos últimos 30 dias, governo, deputados e senadores ensaiaram uma resposta às ruas. A presidente Dilma anunciou que o governo iria investir R$ 50 bilhões em projetos de mobilidade urbana e, ao mesmo tempo, contratar médicos estrangeiros. No Congresso,  houve o funeral do plebiscito e, no seu lugar, a criação de um grupo para iniciar os estudos da reforma política, que, no entanto, não deverá valer para as próximas eleições.

As medidas anunciadas até agora ainda são uma resposta pálida ao vigor das ruas. O problema é que tanto o governo quanto o Congresso trabalham contra o tempo. Ano que vem haverá eleições. Se o que for feito até lá não agradar, a derrota nas urnas será inevitável, tanto para o governo quanto para deputados, senadores e governadores. Para complicar, antes da eleição haverá a Copa do Mundo, quando os protestos poderão voltar, aí com reflexos diretos na eleição, sem que os atingidos tenham tempo para qualquer operação destinada a minimizar os seus efeitos.

O sociólogo Rudá Ricci define o atual cenário com sendo uma combinação de otimismo com tensão. Otimismo porque, segundo ele, a pauta das mudanças já foi colocada claramente pelas ruas. A tensão decorre do fato de estar ocorrendo um descompasso entre as manifestações e a resposta do governo e do Congresso.

Como exemplo de descompasso, ela aponta o sepultamento da proposta de plebiscito para a definição do conteúdo da reforma política, instrumento visto por Rudá como um passo inicial que deveria ter sido dado em direção a um modelo político aberto a uma maior participação da sociedade.

Para Rudá Ricci,  o sistema político institucional brasileiro está à beira de um colapso. "Se tivermos mais uma ou duas manifestações como as de junho, o sistema entra em colapso mesmo", afirma Rudá. Nesse caso, sua previsão é pessimista: nas eleições do ano que vem, haverá uma verdadeira enxurrada de votos brancos e nulos. E, na Copa, a repetição dos protestos.

Outro que também não tem dúvidas de que os manifestantes vão voltar às ruas na Copa do Mundo é o cientista político com pós-doutorado pela Universidade de Chicago Ricardo Guedes. "O aviso está dado", afirma Ricardo Guedes, que considera como hipótese altamente possível o eleitor dar o troco não reelegendo deputados, senadores e governantes que demonstrarem, ao longo dos próximos meses, pouco comprometimento com as reivindicações das ruas. "A punição será ano que vem."

Quem também considera os protestos como sinal de colapso da representação política é o antropólogo Luiz Eduardo Soares. Para ele, o que ocorreu foi uma mudança radical na ordem estabelecida. Nela, os partidos disputavam o poder e os interesses iam se acomodando e se confrontando mutuamente, a ponto de se acreditar que dificilmente a presidente Dilma deixaria de se reeleger, a não ser que algo totalmente fora do natural ocorresse.

"O futuro era o presente renovado. Não havia maiores dúvidas de que ele era previsível e apenas reproduziria o presente, sem maiores riscos", afirma Luiz Eduardo, que considera como legado dos protestos a reintrodução do futuro na cena política. "O grande legado é o agora, o das ruas, do tempo, da história. Voltamos a ter ação humana, criadora, libertária. O futuro voltou a existir." Ele prefere encarar a imprevisibilidade produzida pelos protestos pelo seu lado positivo. "A imprevisibilidade e a incerteza provocam angústia, mas há também o outro lado, o da liberdade e o da criatividade. As manifestações fizeram o relógio andar", diz o antropólogo.

Nas ruas, o recado foi dado por uma mobilização que em nada se pareceu com outros protestos, como o das Diretas Já, de 1984, e a que resultou no impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992. No lugar de partidos políticos, organizações da sociedade civil e lideranças políticas de peso, o que se viu foi um movimento sem líderes, ou, para usar uma expressão de agora, um movimento horizontal. Para a historiadora Lucília de Almeida Neves Delgado, a maior prova disso foram os cartazes nos quais os manifestantes colocaram suas reivindicações: eram cartazes individuais, representando, cada um, o desejo da pessoa que o carregava.

A horizontalidade e a inexistência de lideranças foram um desafio para a polícia e as autoridades formalmente constituídas, que se viram diante de uma situação até então inusitada: em ocasiões anteriores, sempre aparecia alguém na condição de porta-voz do movimento, o que não ocorreu agora. Com raras exceções, não houve com quem negociar, ainda que, em seu conjunto, os manifestantes dispusessem de uma força política imensa.

Os próximos passos a serem dados ainda são uma incógnita. Há quem acredite, como Ricardo Guedes, que os grupos que foram para as ruas venham a buscar alguma forma de institucionalização, mas não necessariamente pela via do partido político. A hipótese que ele considera mais viável seria a constituição de organizações civis especializadas em temas como saúde, transporte ou educação, entre outros, que estiveram mais em evidência nos protestos de junho. De qualquer forma, ele acredita que esta seja uma alternativa de longo prazo. Porque a curto prazo, ou seja, até a Copa do Mundo, ano que vem, não haverá, a seu ver, nenhuma mudança na forma de organização dos protestos.

Luiz Eduardo Soares tem uma posição diversa. Tendo em vista que o movimento nasceu como uma negação das formas tradicionais de representação política, seria uma contradição o movimento optar por qualquer um dos modelos hoje institucionalizados. "Acho impossível. Seria uma contradição", diz o antropólogo, que, pelo caráter inovador dos protestos, reclama uma maior humildade dos estudiosos para entender o fenômeno. "Nunca tivemos um movimento desse tipo. Como fenômeno novo, tem que ser observado com humildade sociológica", pondera Luiz Eduardo.

Além do caráter horizontal e da inexistência de lideranças à frente do movimento, Lucília Neves e Ricardo Guedes chamam a atenção para outro diferencial: os atos de violência, que, para ambos, merecem uma reflexão um pouco mais aprofundada que vá além da crítica de que se trata apenas de atos de vandalismo. "Há que se pensar nesse assunto", pondera a historiadora, que não concorda com a teoria de que o brasileiro seja um homem cordial. "Os atos de violência foram o sinal de que o homem cordial brasileiro não existe mais." Para Ricardo Guedes, a violência que marcou muitas manifestações não deve ser analisada apenas como vandalismo e sim como um sinal de que a paciência da população está chegando ao seu limite. "Se fosse pacífico, nada se resolveria. O aviso foi forte", afirma Ricardo Guedes.

Lucília não enxerga a existência de contradição entre os programas do governo federal de inclusão, que estão produzindo a redução das desigualdades sociais no país, e a explosão dos protestos. Para ela, um é consequência do outro, pois a inclusão social gera, automaticamente, uma pressão pela melhoria dos serviços públicos, como saúde, educação e transporte, cuja baixa qualidade foi o estopim dos protestos, que começaram em São Paulo e se espalharam pelo país afora em questão de poucos dias. "Quando se tem mais cidadania, mais as reivindicações aparecem", diz a historiadora, que considera haver uma unidade nos protestos: a reivindicação por cidadania.

Sua expectativa é de que o governo federal tenha duas frentes de atuação: uma é a que mantenha as políticas de inclusão social; a outra é a do fortalecimento das políticas de bem-estar social, que se caracterizam pela oferta de serviços públicos de qualidade em todas as áreas e para todos os segmentos sociais, independentemente da classe social de quem busca os serviços. Somente a combinação dessas duas políticas poderá, segundo ela, fazer com que se chegue a um cenário de menor tensão. O momento exige ações plurais. De forma concatenada e com objetivos muito definidos", diz a historiadora.

Adriana Torres, do Movimento Nossa BH, que atua fazendo o acompanhamento da execução orçamentária da Prefeitura de Belo Horizonte, considera que os protestos foram importantes porque trouxeram para a cena política segmentos que até então estavam à margem. Ela, no entanto, não acredita que, mesmo com as redes sociais, seja possível reeditar, hoje, o modelo da democracia representativa da Grécia Antiga, no qual todos os cidadãos opinavam e decidiam. "Uma democracia direta, limpa, hoje é impossível de se ter", afirma Adriana Torres.

Por essa razão, ela não considera que o sistema atual, que tem os partidos como pilares da representação política, possa ser abandonado. O ideal, no entender de Adriana Torres, é buscar um modelo intermediário, que mantenha o atual, mas, ao mesmo tempo, abra espaços para uma maior participação popular nas decisões. Uma das alternativas que ela propõe é a de mudança das regras para a convocação de plebiscitos, para que se tornem um instrumento de uso mais comum.

Mesmo para os partidos políticos, ela entende que mudanças também podem ser adotada, de forma a torná-los mais transparentes e mais democráticos em suas decisões. De qualquer forma, independentemente dos rumos que a situação tomar, uma coisa é certa: os protestos produziram um cidadão mais consciente de seu próprio papel. Prova disso é dada pela própria Adriana Torres, que nas últimas semanas tem recebido um grande número de consultas de pessoas que procuraram o Nossa BH dispostas a também participar do acompanhamento das ações da prefeitura da capital. Para ela, o saldo dos protestos de junho já é altamente positivo. O próximo passo, para ela, é refinar esse ganho de tal forma que as pessoas que foram para as ruas passem a ter uma atuação política mais planejada. "Será um ganho incrível", afirma Adriana Torres.

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