'Alguma poesia', de Drummond, acaba de ser relançado pela Companhia das Letras

Primeiro livro do poeta, lançado quando ele tinha 28 anos, exibe a maturidade inacreditável para um homem tão jovem

por João Paulo 20/07/2013 06:00

Sérgio Moraes/Reuters
Carlos Drummond de Andrade, "encantado" em bronze, observa a Copacabana do século 21 (foto: Sérgio Moraes/Reuters)
Imagine que você vai ler agora, pela primeira vez, o livro de estreia de Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987), publicado originalmente em 1930, quando o poeta tinha 28 anos. O desafio pode se tornar uma forma interessante de avaliar a universalidade da poesia: afinal, o que tinha sentido há mais de 80 anos ainda tem o que nos dizer hoje?. A primeira coletânea de poemas de Drummond, 'Alguma poesia', acaba de ser relançada no projeto das obras completas que vem sendo realizado pela Companhia das Letras. Como os demais volumes, o trabalho é excelente na fixação do texto, na oferta de imagens da época e no estudo crítico, desta vez de Eucanaã Ferraz, que destaca o humor peculiar de Drummond, sempre um exercício de inteligência.

O livro inaugural do poeta, a despeito de críticos que gostam de separar a obra em fases mais psicológicas, mais formais ou mais políticas, chega ao leitor exibindo a maturidade inacreditável para um homem tão jovem. O autor tem o que dizer sobre o mundo, sobre a poesia e, sobretudo, sobre si mesmo. É uma estreia espantosa, principalmente no momento de consolidação do primeiro modernismo, ao qual o jovem chega e se emparelha a poetas mais velhos e experientes. No livro, há todos os traços do estilo que revolucionava a literatura brasileira de então, mas com uma marca pessoal que se tornou identificável, singular, drummondiana.

Sendo um livro essencialmente modernista (na linguagem coloquial, no antissentimentalismo, na fanopeia, no humor, na crítica ao convencionalismo, na ironia jogada sobre o provincianismo), ancorado em seu tempo e no programa político e existencial do período, o que Alguma poesia tem a nos dizer? Não se trata de defender a utilidade da poesia, longe disso, mas de buscar na leitura de um dos livros mais importantes da nossa literatura, inspiração para decifrar alguns signos do nosso tempo e encontrar pistas para entender o coração angustiado das pessoas que o habitam. “Poema de sete faces”, que abre o livro, era a seu tempo uma apresentação do poeta, uma espécie de cartão de visitas. Em seu cubismo (para usar expressão da época) ou composição fractal (conceito que se tornou conhecido muito depois), Drummond fragmenta para buscar a unidade impossível de um “eu todo retorcido”. Cada uma das sete faces é um modo de ser que é também um modo poético. Talvez seja também um modo histórico. Acompanhemos o poeta, passo a passo.

Quando nasci, um anjo torto,
desses que vive na sombra
disse: Vai Carlos, ser gauche na vida.

O poeta se apresenta, de cara, como um desajustado, um gauche mineiro, que saiu do interior em busca da cidade, levando consigo as experiências da província e seu desajustamento. Tema clássico da poesia, desde Baudelaire, ganha aqui um tom menor, já que nosso personagem nem desafia o mundo nem é réprobo de deuses, mas apenas um homem desditado por um desimportante anjo torto. Quem não se sente gauche no mundo de hoje, com as demasias da felicidade ditada pelo consumo, levante a mão. Mesmo sem a dimensão trágica da queda, que o cinismo doce do poeta ameniza, há certa convocação, com pitadas de estoicismo e rebeldia, a desafiar o destino tão sem graça em que nos metemos. Que a palavra “gauche” signifique ainda “esquerda” é uma provocação a mais para quem, cansado da ética pragmática do egoísmo e mesmo sem anjo torto confiável no horizonte da política (já que estão todos tão iguais), anda em busca de saídas mais coletivas.

As casas espiam os homens
que correm atrás das mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

Se a primeira face tem como origem o olhar do poeta, ainda que gauche, agora o mundo invade a cena e quem espia são as casas. O voyeurismo, com sua sugestão erótica, parece mostrar que nós, pobres e paralisados objetos de observação alheia, estamos prestes a ser dissecados pelo olhar do outro. Nossos segredos, mesmo os mais íntimos, já são parte de uma ameaça que nos vigia o tempo todo. Quando se acompanha a atual investida dos EUA sobre os outros países e o avanço das grandes empresas de informação sobre as possibilidades de mercado por meio dos dados monitorados pela internet, é possível perceber que dificilmente as tardes serão azuis daqui para frente. Os desejos são tantos. E há muito deixaram de ser meramente sexuais.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
porém meus olhos
não perguntam nada.

Nesta face o poeta parece exprimir nossa incapacidade de dar conta da velocidade. No segundo verso, as cores das pernas não são sequer separadas por vírgulas. É tudo rápido, de uma vez só (e olha que as pernas passam de bonde...). Com isso, o homem fica dividido entre a sensação e o sentimento. O coração pergunta, mas os olhos não estão nem aí. A rapidez, que deixa o poeta ainda mais gauche, é a mesma que nos cobra, a todo momento, mudar de ideia e de objeto de desejo. Não existe nada mais velho que o último modelo de celular. O coração pode até sofrer com sua fraqueza em desafiar desejos que não reais. Mas os olhos não perguntam nada. Onde havia o sofrimento, hoje há sofreguidão.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos
e do bigode.

Drummond não era fácil. Quando o leitor ia se acostumando com o eu lírico desajustado e cambiante, ele retira o gauche de cena e coloca no lugar um “homem” comum – ainda por cima parecido com ele, com óculos e bigode –, como se fosse um retrato respeitável e insondável. O personagem da quarta face é definido por negativas e limitações: não conversa e tem poucos amigos. Para ser respeitável, o melhor é se isolar em máscaras sisudas e simples. Os tempos são mornos, o ideal é que as pessoas também o sejam. Mesmo a alegria tem hora. Um tempo sem papos e raros companheiros é uma quadra de convenções frias. É sempre melhor deixar para depois, adiar. Quem adia, não arde. Quando não temos bigodes reais disponíveis, fabricamos simulacros para baixar a temperatura da vontade de ser mais.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Depois de se afirmar com tanta convicção na estrofe anterior, o poeta troca a autossuficiência pela orfandade absoluta. Ao repetir as palavras de Cristo na cruz, o guache materializa sua condenação à liberdade. Não é outra a sensação que hoje parece jogar os homens de um lado para outro em sua relação com a religião. Num momento, afirmamos orgulhosamente a ausência de Deus (movidos pela posse de uma imanência balofa); no outro, usamos os símbolos e a filiação religiosa como uma distinção que parece afirmar que só nossa religião é boa. Os outros são sempre fundamentalistas e rasos. Não temos força para negar Deus, nem fé suficiente para aceitá-lo.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

A palavra mundo é repetida seis vezes e ouvida como eco uma vez mais no nome Raimundo. Embora seja vasto a ponto de ter que ser dito tantas vezes, o mundo é menor que o coração do poeta. Esse jogo entre duas vastidões é o tema da sexta face. O choque, no entanto, não admite soluções fáceis, como rimas pobres. Este é o drama em que nos metemos. Quanto maior a dimensão de nossas responsabilidades, maior a tendência a fugir do que diz respeito a todos em direção aos motivos do afeto, que são só nossos, mesquinhos. Em pequenos gestos repetimos sem constrangimentos a negação do mundo pela afirmação do nosso desejo. Renegamos a política porque são todos sujos; paramos o trânsito porque nossa pressa é maior; sujamos o mundo porque temos dinheiro para isso. Assim como há crédito de carbono para poluidores ricos e conservacionistas pobres, parece haver crédito de mundo: pagamos caro e por isso podemos sobrepor nossa individualidade às demandas do coletivo.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
Botam a gente comovido
como o diabo.

Em tom de confissão, a última face/estrofe parece desdizer tudo que foi afirmado até então, dando peso culpado e camarada ao momento marcado pela bebida e pela lua. No entanto, se o leitor pensar de outro modo, a circunstância da confissão não nega o que foi dito, antes o justifica ou se desculpa pela sinceridade. Assim, o resultado é uma síntese feita de contrários que se intercambiam o tempo todo, ora mais razão, ora mais sentimento; mais mundo, mais coração; gauche e convenção. “Poema das sete faces” é uma sequência de retratos. De cada lugar que se olhe, o poeta é um, como são os leitores. A soma das partes não é igual ao todo. Não há todo num mundo de homens partidos.

O “Poema das sete faces”, ao final, não anula as diferenças que dramatiza em cada uma das faces – às vezes com humor, outras com melancolia –, mas mostra que precisamos conviver com os motivos que nos constituem como pessoas. Não pode haver lição mais moderna que a afirmação dos nossos limites. Nem mais necessária para um tempo que pensa que ultrapassou a modernidade pelo fato de ter enterrado as utopias e inventado brinquedos engenhosos, sem se dar conta de que a injustiça sequer foi arranhada com essas aventuras irresponsáveis. No fundo, como revela Drummond, somos mesmos uns desajeitados. E essa é a única salvação.

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