Obra de Manoel de Barros devolve a potência da imagem à linguagem

Guiada pelos segredos da palavra, sua poesia celebra a misteriosa comunhão do homem com o mundo

por Renarde Freire Nobre 20/07/2013 06:00
Renata Caldas/reprodução
(foto: Renata Caldas/reprodução )
Manoel é um atormentado das imagens com o dom de verbalizá-las. Poderia ter ficado lelé e prestável para hospícios, mas virou poeta prestável para afetos. Nasceu nos arredores do Pantanal “entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios”. Ainda jovem, partiu do primitivo pantaneiro para ápices da cultura. Morou longo tempo no Rio e passou uma temporada em Nova York, visitando cinemas e museus. A partida e o distanciamento dos ermos pantaneiros não sinalizam abandono das origens, porque, a bem dizer, as origens é que nunca deixaram a alma de Manoel. Os bichos, do ar e do chão, as vivências e as companhias de infância virão a ser as imagens preferenciais embaralhadas na mente e fixadas pelas mãos do poeta. A poesia de Manoel é a estilização do primitivo de si. O menino foi o escorço do poeta, daquele que repôs a infância em palavras, que sempre trouxe um “outono” “no chão da voz”, que ainda criança viu o “morro entortando a bunda da paisagem” e, dessa feita, compôs seu primeiro verso.

Manoel vagou e se alimentou de conhecimentos sem deixar jamais de ser o que é: um homem do chão do mundo e de muitos mundos na imaginação. Encontro raro de terra e ar, da linhagem de Guimarães Rosa, ao modo de um sapo que, pulando de quando em quando, “muda a perspectiva do chão”. Como um bugre das lonjuras, Manoel sempre se sentiu bem no ermo da distância. Em imagens, o poeta amplia a sua natureza, sua solidão, seu abandono. A solidão para o poeta é a “opulência da alma” imaginativa.

“Me procurei a vida inteira e não me achei – pelo que fui salvo.” Não se achou porque não caminhou como um adulto cartesiano, mas inflamado de meninice, com mania temporã de brincar com as imagens. Destino de quem erra por desvios e desvãos. Com a morte do pai, herdou fazenda robusta de reses. Durante anos, cuidou dos negócios, deixando a poesia de lado. Porém, quando essa recobrou a sua presença, Manoel foi impulsionado a “comprar o ócio”. Desde então, dedica-se ao tempo inestimável da criação. Pela trilha das imagens segue a desviar-se, e na palavra encontra a sua única verdade, trazendo na carne da alma a verve da imaginação e o verme da ociosidade.

Manoel multiplica e distribui imagens poéticas, faz da palavra pão, fermentado em terra bruta, levemente amassado por patas de passarinhos. “A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.” E, assim, sabe tudo de poesia, sabe que a palavra deve ser restituída ao primitivo dos sentidos e das vivências, os quais não ficaram lá atrás, perdidos no tempo, mas pulsam na vivacidade e atualidade do fantasioso. A infância, “a camada mais fértil da vida”, não lhe compõe como passado nem está confinada na memória consciente. A infância lhe é universo de insignificâncias e inutilidades, mas, sobretudo, de sensibilidades sobre coisas nativas permanentemente revisitadas e reviradas, coisas que só servem para poesia. Em Manoel, a imaginação coloniza a memória, memória que lhe foi desde sempre imaginativa, “botando um rasgão na bunda da razão”. Quem governa a alma do poeta é a imaginação, o poder da invenção.

O seu estilo é o do “delírio do verbo”. A poesia como a própria voz delirante do verbo, tormento desaguado em delírio criativo. A natureza que Manoel verdadeiramente ama é a da imagem encarnada em verbo. Como poeta, sabe que a imagem precede e alimenta o verbo, por isso mesmo alça a palavra ao primitivismo para que ela possa se reencontrar com a essência imagética, restituindo-se à linguagem o que ela originalmente é: potência de imagem. A palavra despida de toda a couraça da seriedade para voltar a brincar em nudez semântica. A palavra posta em posição primeira. E as palavras são, na sua fase larvar, desprovidas de significado. Só vale a língua com força imagética. Poesia, puro delírio imaginativo, letra sem estatuto de lei, verdade ou função. “Poesia é voar fora da asa”, voar na língua das imagens. O poeta é feito pássaro que enxerga com as asas da invencionice.

Manoel, o atormentado das imagens, o fora da lei do verbo, andarilho de estradas tortuosas e paisagens surreais, afeito às frases sem eira nem beira, levando no dorso indômito da poesia a fúria das imagens. Não olha o mundo como uma pessoa razoável. Prefere lentes primitivas, desfocais. A palavra poética não quer compreender. Ela quer transver o mundo das coisas. “O pulo do sapo é que faz o espaço.” À sua poesia aplicam-se os seguintes versos de Mário Quintana em “O descobridor”: “Os atônitos objetos que não sabem mais o que são / no terror delicioso / da transfiguração”. É próprio do poeta desfazer naturalidades porque “(...) arte não tem pensa: o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isso seja: Deus deu a forma. Os artistas deformam. É preciso deformar o mundo: tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall. Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a deformar”. Imaginar é transver o que vem de fora e se encontra aprisionado na retidão compreensiva. É como um passe de mágica, quebrar o barro da realidade para moldar inexistências. Fazer poesia é mudar a perspectiva do mundo.

A poesia sem qualquer outra pretensão que não a de dar linha à imaginação. Daí ela se dispor a construir ilogicidades, apresentar condições e relações surreais – a lesma “carrega na alma um incêndio de girassóis”. Para a fabricação delirante, Manoel conta com alguns brinquedos prediletos: “Um chevrolé gosmento, um resto de inseto, um abridor de amanhecer, ferro de engomar gelo, alicate cremoso, guindaste de levantar vento”, enfim, tudo aquilo que pode ser “disputado com cuspe à distância”. Faceiro, o poeta gosta das coisas de  jogar fora, que, não servindo para nada, estão livres para encantar. Manoel se vale da imensidão e robustez do nada para tecer o inútil. Quando escreve que o “nada lhe engrandece”, ele não pensa em um vazio ou no exíguo. Diz da abertura para uma realidade robusta, sem fronteiras, sondável pela fantasia, um estuário de imagens para além da trava das simbolizações ordinárias e funcionais. Manoel pega os descartes e lhes afere devido valor imaginativo. Pratica a poética da desfaçatez metafórica que tudo deforma, mas que, diferentemente das máquinas, não o faz com propósito de utilidade.

“Maior que o infinito, é o incolor.” A partir do incolor se constroem formas e tonalidades. E, se o poeta prefere as coisas ao alcance dos olhos, não é por miopia ou mera proximidade, mas porque o que se vê faz-se motivo de emoção e imaginação. Poesia, para ele, não guarda nada de metafísico, não tem a ver com o não acessível aos olhos que se esconde no fundo da alma. Tais segredos podem ser valiosos para filósofos, não para poetas. Como um analfabetismo semântico, a poética de Manoel é terreno desocupado de designações sérias. “Significar reduz novos sonhos para as palavras”. As palavras são mais sagradas que os sentidos que porventura possam comunicar. Palavras saídas inteiras, com pele, sons, cores, cheiros, movimentos, tessituras. A poesia de Manoel difere do plano das ideias porque nela as coisas não recebem a veste das significações, mas aparecem como personalidade com pleno direito de existência e manifestação. Porque a palavra poética não é o discurso ponderado do homem sobre o mundo. É, antes, comunhão misteriosa do homem com o mundo.

Manoel não faz poesia como Fernando Pessoa, que talha a palavra com intenção de significação. O único sentido cabível da poesia de Manoel é o do delírio. Diferença de estilos: Pessoa é um poeta de ideias, para isso se metamorfoseia em personalidades que ampliam o horizonte dos sentimentos e dos sentidos; Manoel é poeta de imagens, daí não assimilar experiências, pessoas e coisas senão como personagens de uma trama imagética e sem sentido. E, mesmo sendo um bugre civilizado e culto, ele não se põe erudito. Acadêmico, então, nem pensar, um tipo de “caranguejo” “achante” de conceitos. O poeta chega a desdenhar de chás solenes e de egrégias condecorações. Mas, como não, para quem tem a índole desmiolada e nada séria de encostar “um cago no sublime. E no solene um pênis sujo”.

Um narrador solene diz para a pedra: “Sou eu, me deixa entrar”, ao que recebe como resposta: “Tenho outra natureza, sou hermeticamente fechada”. Acredita-se, com isso, que indagar é o destino do humano e a altivez maior do espírito. Embora possa perfeitamente ver porta em pedra, Manoel não teria o pudor de nela bater. Ele prefere penetrar as coisas por inteiro, de modo algum abusada ou apressadamente. Só lhe vale a linguagem da alma que brinca, fabula, dotada da delicada inocência necessária para o inútil.

A ciência nos ensina a separar as palavras e as coisas, ao reconhecer que a linguagem não pode o real. Também porque precisa desencantar as coisas. Manoel é, então, pré-civilizado, “agramatical”, não por crença na verdade imaculada das palavras, mas por amor à fabulação da língua. Ao pôr as coisas para cavalgarem no dorso da palavra, a poesia nega-lhes a separação, restituindo ao homem o dom de variar e encantar as coisas com a força da imaginação. Manoel realiza uma operação alquímica e libertina: ele põe as palavras para cobrir, penetrar e amar as coisas, de sorte que não pensa as coisas, mas as projeta em exposição delirante, fazendo do texto tela a ser vista com as dimensões da alma. Sua poesia é rebento do ato obsceno e despudorado de as palavras copularem com as coisas, a ponto de elas mesmas se aparentarem às coisas, a ponto de seus sons coaxarem, voarem e pousarem em árvores.

Cópula das palavras com as coisas, delírio erótico do verbo, êxtase imagético, de modo que as palavras ganham natureza de coisas e as coisas adquiram status de linguagem. Rompe-se, com isso, uma barreira ainda mais invisível e artificial, a que separa a palavra e o ser. Não mais a ascendência da linguagem ponderada sobre a existência – pretensão em que se firma o conhecimento –, mas fusão imagética da alma com a palavra, de modo que “descobrir novos lados de uma palavra era o mesmo que descobrir novos lados do Ser”.


. Renarde Freire Nobre é professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais

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