Igreja mostra que nem sempre foi muito santa

Em mais de 2 mil anos de história, a Igreja mostra que, mesmo fundamentada em mensagem universal, se esmerou em responder às demandas da política e da cultura, mas nem sempre de maneira muito santa

por 13/07/2013 00:13
J. D. Vital


Alessandro Tarantino/AFP
Sempre ligada aos assuntos terrenos, a Igreja Católica viu florescer em seus corredores internos muitas conspirações políticas feitas em nome de Deus (foto: Alessandro Tarantino/AFP)
Na virada do segundo milênio, a unidade cristã sofreu um abalo que ainda divide a Igreja: o cisma do Oriente. Em 1054, o patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulário, da Igreja Bizantina, rompeu com a Igreja de Roma. Fazia algum tempo que os orientais não reconheciam a supremacia do papa.

Anos conturbados se seguiram na cátedra de Pedro, com papas depostos, dissolução de costumes e lutas entre cardeais. Os papas já não subiam aos altares para a devoção dos católicos. De Pedro, o primeiro, até João I (523–526), o 53º papa, todos os sumos pontífices foram declarados santos, com exceção de dois: Libério (352–366) e Anastácio II (496–498). A maioria morreu mártir.

Os tempos mudaram. Na Igreja, prosperam a simonia e o nicolaísmo (concubinato de padres, que têm mulheres e filhos). Roma virara terra de escândalos entre os anos de 880 e 950 – afirmam os historiadores.  

 Em sua sina de santa e pecadora, a Igreja gera naqueles tempos obscuros a maior expressão do cristianismo após Jesus – Francesco Giovanni di Pietro Bernardone (1182 – 1226), São Francisco de Assis. Padroeiro da ecologia, sua influência ultrapassa os limites do cristianismo e encanta a humanidade. E perdura com tamanha força que até no filme A dama de ferro, a primeira-ministra Margareth Thatcher, vivida por Meryl Streep, assume o governo inglês em 1979 recitando os versos franciscanos – “onde houver discórdia que eu leve a união”.

Na Idade Média, o cristianismo cria monastérios e catedrais. Monges copistas preservam obras da cultura universal. A arquitetura religiosa brota em toda parte da Europa. Santo Tomás de Aquino (1225 – 1274) recupera o pensamento de Aristóteles para a filosofia e na “Suma Teológica” sistematiza a doutrina cristã.

 Em boa convivência com a Igreja Oriental, os muçulmanos durante séculos permitiram o livre acesso dos cristãos a Jerusalém. Após o cisma, a situação mudou. O papa Urbano II organizou em 1095 a primeira expedição de libertação, que recebeu o nome de cruzada porque os soldados estampavam uma grande cruz em suas vestimentas.

Com a morte de Clemente IV, em 1268, o trono de Pedro permaneceu vago quase três anos, devido às disputas de poder. Como os cardeais não chegavam a um consenso, o povo romano trancou-os, “cum clave”, ou seja, com chave, até que elegessem o papa. A medida deu resultado. Em 1º de setembro de 1271, foi eleito o cardeal Teobaldo Visconti com o nome de Gregório X. Daí em diante, a eleição dos papas ganhou o nome de conclave.

Na sucessão do papa Nicolau IV, em 1292, aconteceu outro período de vacância no Vaticano, embora os cardeais fossem apenas 12. Em 5 de julho de 1294, finalmente, a Igreja conheceu o novo papa. E ele era um santo. Foram buscar o monge beneditino Pietro Del Morrone, que vivia em uma caverna, para calçar as sandálias do Pescador.

Aos 79 anos, montado em um burro, Celestino V entrou na cidade de L’Aquila, a poucos quilômetros de Roma. A esperança de conversão do papado e de renovação da Igreja não durou seis meses: em 13 de dezembro do mesmo ano, Celestino V renunciou.

Marcha da insensatez A cidade francesa de Avignon, a 650 quilômetros de Paris, foi de 1309 a 1377 residência de sete papas – chamados papas franceses, por sua subordinação aos reis da França.

A volta de Gregório XI ao Vaticano, em 1377, por intervenção direta de Santa Catarina de Sena, não encerrou a confusão. Ao contrário, criou uma crise que ameaçou a unidade da Igreja, conhecida como grande cisma do Ocidente, com um papa em Roma, outro em Avignon e o terceiro em Pisa. Eles se excomungaram mutuamente.

O ambiente na corte vaticana só piorou dali para frente. Dá para repetir a pergunta que o papa Bento XVI fez em 2008, durante visita ao campo de concentração de Auschwitz, na Polônia: “Onde estava Deus naqueles dias? Por que Ele se calou então? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do mal?”.

Paradoxalmente, é desse período obscuro da Igreja que hoje a civilização ocidental mais se orgulha, quando milhões de turistas se extasiam diante dos tesouros artísticos preservados nos museus vaticanos.
 
O nepotismo tomou conta de Roma. Sisto IV (1471–1478), que construiu a Capela Sistina, nomeou cardeais sobrinhos e primos. Júlio II, o papa de botas, pai de três filhas, descansava das batalhas contemplando Michelangelo Buonarotti pintando o teto da Capela Sistina. Na parede atrás do altar, seu afresco do juízo final resume o esplendor da Renascença.  

Quando a América foi descoberta por Cristóvão Colombo, em 1492, e Pedro Álvares Cabral desembarcou em Porto Seguro, em 1500, reinava em Roma um papa espanhol, o nobre Rodrigo Borgia, símbolo dos tempos de trevas na Santa Sé. Ricaço e sem escrúpulos, Rodrigo subornou membros do colégio cardinalício com tesouros, bispados e posições eclesiásticas para chegar ao trono de São Pedro.

Em 11 de agosto de 1492, Borgia iniciou seu pontificado como Alexandre VI. Na corte papal, orgias sexuais, assassinatos, corrupção e comércio de nomeações clericais tornaram-se triviais. Foi numa festa em seu palácio que o cardeal Rodrigo Borgia, bispo titular da diocese de Porto (onde funciona o Aeroporto Internacional Leonardo Da Vinci, em Fiumicino), enamorou-se da linda Giulia Farnese, a mulher mais bela do Renascimento segundo a crônica da época.

 A dissolução dos costumes desmoralizava o comando da Igreja. O frade dominicano Girolamo Savonarola rebelou-se e acabou queimado em praça pública. Tantos crimes, segundo a historiadora norte-americana Barbara Tuchman no livro A marcha da insensatez, resultaram em nova cisão no cristianismo, com o advento da reforma protestante de Martinho Lutero, monge da ordem agostiniana.

Para financiar a construção da atual Basílica de São Pedro, iniciada em 1506, o papa Leão X definiu um sistema de indulgências para os doadores de dinheiro. Lutero esteve em Roma e não gostou do que viu. Em 1517, o monge alemão pregou na porta da igreja de Wittenberg 95 teses que desaguaram no rompimento com Roma. Em 1534, o rei inglês Henrique VIII, que de tão fiel a Roma mandara queimar escritos de Lutero, também rompeu com o papado, porque Clemente VII não aceitou anular seu casamento com a espanhola Catarina de Aragão. Ele queria casar-se com Ana Bolena. Assim nasceu a Igreja Anglicana.

Nesse mesmo período, funcionou o tribunal do Santo Ofício para investigar e punir judeus e cristãos heréticos. A Inquisição Espanhola, fundada em 1478, sob o comando de Tomás de Torquemada, queimou na fogueira cerca de duas mil pessoas processadas nos autos de fé. No reinado dos reis católicos Fernando e Isabel, cerca de 170 mil judeus fugiram da Espanha.

Como contraponto, a Espanha comparece nessa época com nomes de primeira grandeza: Bartolomeu de las Casas, Teresa de Ávila e Inácio de Loyola. O dominicano Bartolomeu de las Casas, intitulado “protetor dos índios” pela coroa espanhola, lutou, em vão, contra as atrocidades cometidas pelos cristãos na jovem América.

Teresa reformou a ordem carmelita e 400 anos depois foi declarada doutora da Igreja por Paulo VI. Em 1540, Inácio de Loyola fundou em Roma a Companhia de Jesus, a ordem dos jesuítas, e iniciou o movimento da contrarreforma protestante. Em 1541, inaugurou o Colégio Romano para a formação do clero, atual Pontifícia Universidade Gregoriana.

A Igreja reage à expansão do protestantismo, convocando em 1546 o Concílio de Trento – o mais longo dos 19 concílios. Só encerrado em 1563, Trento disciplinou e modificou a Igreja. Determinou a criação de seminários para a formação do clero e tornou o celibato sacerdotal obrigatório; regulou a nomeação dos bispos e definiu a hierarquia, a supremacia papal; unificou o missal e a liturgia para a celebração da missa; criou o “Index librorum prohibitorum” (lista de livros proibidos); legislou sobre os sacramentos, indulgências e o catecismo.

Os jesuítas desempenharam um papel importante na formação religiosa e cultural do Brasil. Sem sua atuação em defesa dos nossos primeiros habitantes, o massacre das tribos indígenas teria sido maior. Para cá vieram em 1547 na comitiva de Tomé de Souza os primeiros cinco jesuítas. Um deles, o padre Manoel da Nóbrega.

A pedido dele, a Companhia de Jesus enviou uma segunda leva de missionários ao Brasil e nela estava José de Anchieta, com menos de 20 anos. Ele chegou em 13 de junho de 1553 na expedição de Duarte Góis. No ano seguinte, Anchieta participou da fundação do Colégio de São Paulo, origem da capital paulista.

Padre Antônio Vieira notabilizou-se em sua obra literária (Sermões) pela inteligência, a defesa dos índios e do reino de Portugal. Não teve o mesmo ímpeto no combate à escravatura. No “Sermão décimo quarto”, pregado em 1633 no engenho de São João Evangelista, na Bahia, Vieira diz aos negros presentes que deviam “dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós viveis como gentios; e vos ter trazido a esta, onde instruídos na fé, vivais como cristãos, e vos salveis”.

Durante os 300 anos de escravidão negra no Brasil, a Igreja Católica não fica bem na foto, segundo o cientista político e historiador mineiro José Murilo de Carvalho. Com raras exceções. Uma delas foi o lazarista português e sétimo bispo de Mariana, dom Antônio Ferreira Viçoso (1787-1875).

 O professor Maurílio Camello e o bispo dom Gil Moreira lembram sua luta abolicionista: ele proibiu os padres de Mariana de serem proprietários de escravos.  Dom Viçoso estava em sintonia com Joaquim Nabuco, que em audiência pediu a Leão XIII a condenação da escravatura. O papa se mostrou de acordo, mas, por artes do gabinete conservador brasileiro, sua bula a favor dos escravos somente chegou ao Brasil depois de a princesa Isabel assinar a Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.

De volta às origens Leão XIII rompeu o isolamento da Igreja num mundo que fervia de ideias novas. A independência dos Estados Unidos da América, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial na Inglaterra desafiam uma Igreja habituada ao sistema medieval. Em vez de servos, a Europa tinha agora trabalhadores organizados em sindicatos. Surgem santos com preocupação social, como os italianos dom Bosco e dom Orione.

Em 1891, Leão XIII lança a encíclica Rerum novarum e inaugura a doutrina social da Igreja. Em 1917, durante os conflitos da Primeira Guerra Mundial, outra revolução, desta vez na Rússia, perturba a Igreja.  Os comunistas de Moscou explodem catedrais, perseguem padres e bispos.

Papa Pio XII enfrenta dias difíceis durante o regime nazista de Adolf Hitler, que promoveu a matança de judeus. Finda a Segunda Guerra Mundial, explode a Guerra Fria, dividindo o mundo em esferas de influência dos Estados Unidos e da União Soviética, em meio a conflitos coloniais e tribais na África.

Eleito em 1958, João XXIII convoca o Concílio Vaticano II. Ele revolucionou a Igreja e morreu como santo. Esse grande concílio, que em 2012 completou 50 anos de sua abertura, reconduziu a Igreja às suas origens. Abriu o diálogo com os judeus, os cristãos do Oriente e com os protestantes. Iniciou uma aproximação com os anglicanos. Reaproximou a Igreja dos mais pobres e reconciliou-a com a ciência, da qual andava afastada desde que o Santo Ofício condenou o astrônomo italiano Galileu Galilei (1564 – 1642), defensor do heliocentrismo.

Novos focos de tensão colocam a Igreja em confronto com a modernidade, como a questão do aborto e a pílula anticoncepcional, largamente usada pelas católicas, à revelia do ensinamento oficial. O divórcio tornou-se banal mesmo em países de forte tradição cristã, como Portugal, Espanha e o Brasil.

Os cardeais elegem papa o polonês Karol Wojtyla. Ele toma o nome de João Paulo II. O papa globe-trotter arrasta multidões em suas frequentes viagens pelos continentes, mas tem sua autoridade desafiada pelos seguidores da Teologia da Libertação.

 A partir de ideias difundidas pelo dominicano peruano Gustavo Gutierrez, muitos sacerdotes passaram a se valer das técnicas e teorias do marxismo ateu para anunciar o evangelho, como forma de combater as desigualdades e a injustiça social.

Segundo o ex-jesuíta Malachi Martin, a Nicarágua foi o campo de teste da Teologia da Libertação, sob a liderança dos irmãos Fernando e Ernesto Cardenal – o primeiro, padre jesuíta; o outro, da congregação dos padres Maryknoll. Dezenas de sacerdotes participaram ativamente da revolução sandinista. Até pegaram em armas.

 Palmatória dos teólogos de esquerda, João Paulo II não se constrangeu em apoiar, abertamente, a derrubada do regime comunista soviético, por meio de seu conterrâneo sindicalista Lech Walesa. Tempos de debandada de sacerdotes.  Mais de 120 mil padres deixaram a batina entre 1960 e 1980, período de rearrumação da Igreja.

Quando a Igreja conseguiu estancar sua sangria, uma crise muito mais grave veio a público: os escândalos de pedofilia no clero. Escancarados na mídia, os crimes dos padres pedófilos abalaram a Igreja Católica, com destaque para os Estados Unidos, a Irlanda e até a cidade alagoana de Arapiraca.

Disputas pelo poder na cúria romana, suspeitas de fraudes e de lavagem de dinheiro no Banco do Vaticano, bispos e cardeais acusados de abuso sexual fragilizaram Bento XVI. A exemplo de Celestino V, ele renunciou ao papado. Com inspiração, os cardeais elegeram o argentino Jorge Mario Bergoglio com o nome de Francisco. Carismático, ele já recuperou boa parte da credibilidade da Igreja.

Fundada há 2 mil anos por Jesus de Nazaré, a Igreja parece condenada a conviver mais com pecadores do que com santos, seguindo sua herança de compaixão pelos que pecam. Essa surpreendente organização (a mais antiga instituição ocidental ainda em pé, segundo o escritor americano Peter Drücker) equilibra-se na misteriosa dualidade de um corpo feito de barro animado pelo sopro divino.
 
J. D. Vital é jornalista e autor de Como se faz um bispo segundo a alto e o baixo clero (Editora Civilização Brasileira).

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