Deus no mundo plural

A pergunta sobre o transcendente numa sociedade marcada pela racionalização evidencia uma atração pelo mistério, não mais com linguagem metafísica, mas a partir da experiência humana

JACKSON ROMANELLI/EM/D.A PRESS
Prédios de luxo fazem o fundo de onde salta a realidade das vilas das periferias das grandes cidades: há lugar para o sagrado nesse horizonte? (foto: JACKSON ROMANELLI/EM/D.A PRESS)
O conceito de Deus, ou do Transcendente, ou da Realidade Última, é considerado como basilar por todos os sistemas religiosos, já que dá um sentido ao mundo em geral e, em particular, à vida humana. A autêntica questão transcendente com a qual todo ser humano um dia se depara é a questão deste mistério último e derradeiro, que por um lado concede sentido à vida e por outro coloca em crise todos os sentidos previamente dados ao existir. A despeito de todo o processo da modernidade, da crise da secularização e outros fenômenos com os quais convivemos neste novo milênio, a questão por Deus continua a ser aquela que remete ao mistério último e ao sentido definitivo da vida e do ser, pela qual os seres humanos se sentem atraídos ou pelo menos intrigados. E muitas vezes instigados.

O contexto em que vivemos é todo ele feito de ateísmos e teísmos, de pluralidade cultural e religiosa, de fragmentação da crença e de emergência de novas formas de crer. Em meio a esta pluralidade importa situar como a pergunta por Deus é constitutiva da identidade humana, mesmo quando esta pretende negá-la ou a ela ser indiferente.

A crise da modernidade e o advento da chama da pós-modernidade, longe de dar um fim ao processo de reconfiguração do discurso teológico, assume suas marcas principais e se propõe radicalizar a “morte” cultural e conceitual de Deus. Ao lado da reconfiguração do religioso na fragmentação pós moderna, o ateísmo não desapareceu do horizonte ocidental. E não se trata mais de um ateísmo qualquer, ou de uma não religiosidade pura e simples. É, com efeito,uma atitude vital de extrema complexidade, que não busca grandes sistemas ou narrativas para explicar a vida; que entende a existência em termos fragmentados e provisórios; que persegue a imediatez das respostas e o consumo não só de produtos como de ideias, conceitos e crenças.

Não desejando herdar nada da morte de Deus, o ateísmo contemporâneo não é o ateísmo da expropriação e reapropriação do crente ao não crente, do religioso ao secular, da fé em Deus à fé no homem. Ele permanece atado a uma nostalgia e a outros valores “mais verdadeiros”, a outras culturas "mais autênticas” que têm a ver com uma sede espiritual aberta em todas as direções e que não necessariamente vai aterrissar nos discursos oficiais sobre Deus, a fé e a religião.

O pensamento pós-moderno, caracterizado pela “desconstrução” e pela relativização de todo o edifício conceitual aparentemente sólido da modernidade, questiona também toda tentativa de dizer o Absoluto inefável que os cristãos e outras tradições religiosas chamam Deus; considera todo discurso com pretensões à universalização e à totalização como redutor e inadequado e desemboca na indiferença e no desencantamento.

Se a objetividade do mundo – fruto da modernidade – é a resultante extrema da separação de Deus, separação que por sua vez liberta o ser humano e o institui sujeito de seu conhecimento, tornando-o autônomo diante da inteligência e da normatividade divinas, é possível examinar o problema sob outro ângulo. Este seria pensar que agora Deus se retira, deixando o ser humano às voltas com seu trabalho e suas disputas.

Neste contexto, toda maneira de falar de Deus cai por terra e sua inadequação radical é constantemente relembrada. A experiência radical do mistério questiona um discurso moderno que pretenderia trazer tudo à luz, incluída aí a “retirada” e a “morte” de Deus. A relativização de todas as premissas culturais e a crítica do projeto moderno alertam sobre as utilizações apressadas e malfeitas, que pudessem incluir um discurso sobre Deus ou sobre sua “morte” com pretensões a legitimar todas as institucionalizações.

Neste contexto, as religiões e as teologias devem constantemente suspeitar do discurso que constroem, criticando-o e reconfigurando-o a cada passo. Isso fazendo, são igualmente chamadas a imbricar essa constante renovação com a fidelidade a suas tradições, que são parte constitutiva de sua identidade. Pensar e falar sobre Deus hoje não pode acontecer senão a partir do mundo. E este mundo é algo em constante mutação, exigindo uma reinvenção constante e permanente daqueles que o pensam e o dizem.
 
O mundo contemporâneo não é o mundo idílico, perfeito, completo e reconciliado que parecem descrever muitos discursos. Pensamos, em particular, naqueles marcados pelo otimismo dos progressos e conquistas da modernidade, assim como nos que se encontram atravessados de lado a lado pela interpelação legítima da questão ecológica, racial, étnica, de gênero.  Assim também como por deploráveis injustiças. A inserção nas realidades temporais ou terrestres é específica para cada um daqueles e daquelas que por esse Mistério foram tocados, podendo acontecer de distintas formas, dependendo de como se configurará sua experiência.

É em meio a este mundo que o ser humano tocado pela pergunta sobre Deus, pelo desejo do Transcendente e pela atração do Mistério é chamado a experimentar a Deus e falar sobre ele. Não mais–ou não mais apenas–com a linguagem da metafísica ou com a pergunta da teodiceia, mas a partir da vulnerabilidade e da provisoriedade das experiências humanas.

SOLIDARIEDADE PRÁTICA A teologia crítica, assim como o ateísmo crítico, coincide em buscar e encontrar na injustiça, no sofrimento humano e nas situações insuportáveis deste mundo o marco da pergunta pelo sentido último da vida como justiça. Nesse ponto, tanto os cristãos críticos como os ateus críticos encontram-se na luta contra a injustiça e sua sanção religiosa fácil, vislumbrando como único caminho uma solidariedade prática.

Neste caminho de solidariedade prática, também os místicos contemporâneos se destacarão, escolhendo não eludir o sofrimento mas assumi-lo e com ele solidarizar-se. Assumem-no desde dentro, não desejando estar separados da dor que atinge seus semelhantes a fim de, com e como eles e elas, revelar o sentido da vida humana a partir do padecido em suas próprias existências.

Em meio a circunstâncias comuns e correntes, os místicos reinventam o cotidiano, sendo sujeitos ativos de sua própria história e criando novo alfabeto para dizer o que constitui o motor principal de sua vida. Mesmo falando das coisas dos homens e do mundo em suas trivialidades cotidianas, falam sempre das coisas de Deus. Falando do Mistério,que contemplam e que os enche de amor, força e coragem, os místicos falam daquelas coisas que não é necessário primeiro conhecer para depois amar, mas sim amar para conhecer, num movimento que só através do amor penetra na verdade. Muitos pensadores e pessoas de fé de nosso tempo têm refletido sobre como é difícil encontrar palavras significativas para falar dessas coisas de Deus aos ouvidos contemporâneos.

Essa invenção de um novo alfabeto para a narrativa amorosa que flui e transborda da experiência do Mistério de Deus que emerge de uma sociedade plural colide com as normas de expressão costumeira da linguagem, cuja ratio emancipada da lógica do coração articula e se pronuncia sobre o real. E geralmente esse pronunciamento é um acontecimento prenhe de consequências em tempos em que o discernimento constitui necessidade primeira em meio às crises que o mundo experimenta.

Os místicos contemporâneos, testemunhas que anunciam com sua vida  Aquele em quem creem, que viveram a experiência teopática, da passividade configurada pelo amor divino e pela união com o Mistério, são mediadores adequados para dizer, hoje, quem é Deus e anunciá-lo em meio a um mundo secular que parece haver perdido o rumo da linguagem sobre Seu mistério. Sendo, enquanto místicos, testemunhas do Absoluto, que experimentaram em suas próprias vidas, seu testemunho é uma forma de mediação pela qual o divino hoje tenta dizer-se e expressar-se.

Aí está, pois, um imperativo para a fé cristã no mundo contemporâneo: recuperar a narrativa de Deus que gera a fé. Isso se dará recuperando a narrativa das testemunhas que entreteceram a história com sua história, sua experiência, seu compromisso, seu testemunho, seu sangue.

Dentro ou fora da Igreja e das instituições religiosas; nelas comprometido radicalmente ou às margens de suas fronteiras, os místicos e as testemunhas nos ensinam que experimentar o Mistério de Deus no meio do mundo conduz a uma paixão ardente por este mesmo mundo e a trabalhar sem cessar por sua redenção e transformação. Seja qual for seu estado de vida, sua condição social, suas capacidades intelectuais, eles e elas recolhem-se à câmara nupcial, onde a experiência do amor acontece com plenitude e delícia, para mergulhar de cheio na realidade desfigurada do mundo em que vivem, buscando configurá-la segundo o desejo do Deus que lhes revelou misericordiosamente Seu Rosto e os fez participar de Sua Vida.

Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga e professora da PUC Rio, autora de 'A argila e o espírito – ensaios sobre ética, mística e poética', entre outros livros.

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