Aprovação do projeto da"cura gay" revela postura regressiva em ciência, moral, política e até mesmo religião

Decisão ainda demonstra preconceito inconcebível em uma sociedade moderna

por João Paulo 29/06/2013 06:00
Daniel Guimarães/AFP
(foto: Daniel Guimarães/AFP )
A aprovação pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados da chamada “cura gay” é um estranho fato regressivo em meio à onda de sensibilidade, ainda que forçada pela mobilização pública recente, em direção a medidas mais populares. Assim, ao mesmo tempo em que as passagens de ônibus tinham seus preços diminuídos, que a PEC 37 era derrubada e que a condenação dos gastos com a Copa mostrava o constrangimento dos mesmos responsáveis por sua eufórica aprovação há alguns meses, a decisão acerca da forma de considerar homossexualismo ia na direção inversa. O que, no mínimo, mostra uma fratura social profunda.

A bandeira, que já levou milhões de pessoas às ruas em manifestações também horizontais e criativas, foi rasgada com arrogância pelos integrantes da comissão, sem que a repercussão ganhasse repúdio significativo a ponto de mobilizar a mesma atenção das outras demandas políticas emergentes. Enquanto a representatividade parlamentar vive seu momento de maior baixa na história recente do país, a decisão do colegiado – que vem tendo sua atuação contestada desde a eleição de seu novo presidente, o deputado evangélico Marco Feliciano (PSC/SP), homofóbico confesso e convicto –, é tida como legítima, embora fira princípios consagrados da moral, da ciência e da política.

É preciso destacar ainda que, antes mesmo da consideração do conteúdo da decisão, a forma como se deu a aprovação da abertura para a implantação da “cura gay” vem plena de prepotência e do pior do jogo político de cartas marcadas no Congresso. Em primeiro lugar, o projeto do deputado João Campos (PSDB/GO) trata de uma decisão que afronta outros princípios legais, já estabelecidos pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), que desautoriza seus filiados, registrados legalmente para o exercício clínico, a tratar homossexuais como doentes, uma vez que o comportamento não se define como patológico. O CFP, expressamente, proíbe psicólogos a colaborar para o “tratamento e cura da homossexualidade”, além de vetar os pronunciamentos da categoria no reforço a preconceitos ou em qualificar os homossexuais “como portadores de qualquer desordem psíquica”.

Há, como se vê, muito mais que excesso, já que se trata explicitamente de intromissão em seara que não diz respeito ao Congresso, já que se trata de afirmação profissional que, em todo o mundo civilizado, é regido pelos princípios da autorregulação. Ou seja, sai a ciência e entra o preconceito como ferramenta de diagnóstico e terapêutica. A doença passa a ser definida por lei, numa das mais hediondas manifestações daquilo que Michel Foucault chamou de “biopoder”, que faz dos corpos o objeto de repressão por meio da prática de natureza política.

Além do equívoco de origem e propósito, o projeto (que segue agora para outras comissões) foi aprovado num clima de revanchismo em relação à postura da sociedade, que se manifestou contrariamente à condução da comissão pelo deputado Marco Feliciano, abrindo uma crise de legitimidade que mostrou os limites do próprio Congresso, que se mostrou incapaz de corrigir seus desvios internos. Não é motivo de condenar a comissão em si, mas a forma como a mesma vem sendo constituída enquanto espaço de poder de partidos e coligações, que barganham lugares de acordo com interesses identificáveis. Há comissões cobiçadas, como a de orçamento, por exemplo, e colegiados de segunda categoria.

Foi assim que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, antes foro de grande vocalização social e política, se tornou desprestigiada frente a outros comitês que manipulam verbas e analisam projetos mais lucrativos para as máquinas partidárias e suas lideranças. Que os direitos humanos, tradicional território da esquerda, tenha se tornado moeda de poucos centavos na contabilidade política é sinal tanto de miopia ideológica como de ineficácia política, dos parlamentares. Pegos em flagrante jogo de interesse, ainda tentaram negociar com as forças conservadoras para salvar a instituição, mas capitularam e retrocederam para territórios mais defesos.

E não é só isso. Caso se tratasse de decisão individual do presidente da comissão, seria apenas uma derrota pontual, mas é preciso lembrar que a articulação de todo o colegiado foi vitoriosa não apenas para colocar em votação um projeto espúrio, como para aprová-lo por maioria dos votos de seus integrantes. Neste sentido, não se trata de uma decisão anômala, mas de aprovação a ser colocada na conta de todo o Congresso.

Para reafirmar essa estratégia, o próprio presidente Marco Feliciano, antes acuado e sempre evasivo ao se manifestar sobre sua homofobia de fato, saiu a campo não apenas para comemorar a vitória como para confrontar a ministra de Direitos Humanos, Maria do Rosário, que criticou a decisão da comissão, ameaçando e dizendo, de forma clara, que ela ficasse atenta ao ano eleitoral que se aproxima e às dívidas do governo com os evangélicos e os partidos que os representam: “Acho que está mexendo no que não devia, senhora ministra, fale com sua presidenta, porque o ano que vem é político”, desafiou o parlamentar .

Mais que vitorioso em sua campanha e empáfia em se manter à frente de um colegiado mesmo com forte contestação social, com o risco até mesmo de inviabilizá-lo e de gerar crise com seu partido, o presidente põe as cartas na mesa de sua conquista e do que dela certamente virá como consequência. Na realidade, a pauta dos direitos humanos foi conspurcada com apoio das forças políticas constituídas e da esquerda, que perdeu seu protagonismo em nome de outros interesses. A política se apequenou e a civilização brasileira regride de forma preocupante. Mas a situação pode ser ainda pior.

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