A manifestação que começou por R$0,20 segue em direção a demandas universais

por João Paulo 22/06/2013 00:13
Juarez Rodrigues/EM/D.A Press
(foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A Press)
Se tudo começou com o preço da passagem de ônibus em São Paulo e mobilizou sobretudo jovens, a continuidade do movimento vem afirmando uma ampliação desses parâmetros, tanto geográficos como geracionais, em direção a demandas mais universais. A questão da segurança pública, em sua manifesta incapacidade de dar conta do novo cenário, em razão de sua origem institucional e de sua prática histórica, é elemento que provoca o desafio de se constituir, pela primeira vez na trajetória da civilização brasileira, uma polícia democrática.



4) A juventude não mudou o comportamento
O protagonismo dos jovens nas manifestações de rua é evidente, no entanto não é novo. O que cria a perspectiva de que existe uma nova ação da juventude é a soma de dois fenômenos distintos: em primeiro lugar, o desprestígio histórico com os movimentos vindos da periferia do sistema; em seguida, a pluralidade na composição dos novos manifestantes, com a incorporação de atores que estavam fora do jogo político tradicional. O primeiro aspecto é evidente. Em todos os movimentos sociais em atuação no país a presença de jovens é expressiva e, muitas vezes, definidora de pautas, seja em ações como a ocupação de propriedades improdutivas, na luta por moradia, emprego e transporte (a causa está longe de ser novidade para a periferia das grandes cidades), seja, enfim, na busca de nova política cultural, como ocorre com grande força em Belo Horizonte com movimentos como o Praia da Estação (composto basicamente por demandas da classe média) e o Duelo de MCs. No entanto, sempre que se tornavam públicas, era patente o interesse em desvalorizar as manifestações ou circunscrevê-las no seu domínio marginal. O outro aspecto, que aponta para a integração de nova faixa de manifestantes, ao lado da saudável variedade e ampliação do movimento, deixa também patente certa dificuldade de diálogo com expressões políticas, como os partidos e outras organizações. É exatamente pelo fato de não se sentirem representados nessas instâncias que os jovens foram às ruas, mas o repúdio à política como um todo, mesmo em seu enérgico espontaneísmo, não garante a mobilização ou o avanço de consciência possível. A ação gerada pelo ceticismo com a política não ultrapassa a política e pode se mostrar regressiva. O alerta não é apenas para os manifestantes, mas para certa parcela da esquerda que julgava dominar os instrumentos de luta de massas e não compreende a disposição dos novos agentes em aprender com a prática. A indignação da juventude é o motor permanente de transformações, mas é preciso ficar atento para o retorno a formas pré-políticas, que podem alimentar o conservadorismo em momentos eleitorais, como se observou na Espanha em 2011. A voz das ruas está gritando também para o ouvido esquerdo.


5) Pessoas são tratadas como gado
“Mobilidade urbana é o cacete.” O fato que disparou as manifestações em todo o país, o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo, não deve ser visto como menor. Ele expressa a baixa qualidade da atenção pública com aspecto fundamental da vida do cidadão; o alto preço do serviço num contexto de risco de inflação; a falta de transparência e participação na definição dos reajustes, como se tratasse de uma questão meramente técnica; o equívoco do investimento no setor, com o privilégio histórico do incentivo ao transporte individual; o baixo subsídio no preço da passagem reforçando a lógica comercial na consideração de um bem de interesse público; desprezo com o cidadão-consumidor, tratado como gado, em transporte quente, sucateado, que não cumpre horários e circula superlotado. O Brasil é um dos países que menos subsidiam as passagens de transporte coletivo (em torno de 10% contra 60% em Amsterdã e Buenos Aires); que tem uma das piores relações do mundo entre gasto em transporte coletivo e investimento para facilitar transporte individual (segundo o Ipea, para cada R$ 1 investido em transporte público são destinados R$ 12 para incentivar o transporte individual); em que o preço do transporte coletivo mais impacta a estrutura de gastos do trabalhador. Além disso, vem procrastinando a construção e ampliação das linhas de metrô e transporte ferroviário (para o qual existem recursos e tecnologia há décadas) pela manutenção dos setores que lucram com o modelo incentivado: indústria automobilística, construtoras e empresários do setor de ônibus e transporte rodoviário. O descalabro do sistema, ainda que atinja a sociedade como um todo, é também um signo poderoso de injustiça social, atiçador inclusive do preconceito, quando se deposita a responsabilidade do caos nos novos compradores de automóveis. Ninguém pensa que a classe média alta vai deixar seu carro em casa ou mudar o padrão de consumo (um automóvel por motorista, muitas vezes carros enormes e disfuncionais) em nome do interesse coletivo. Quando se fala em transporte coletivo, o alvo é sempre o trabalhador pobre. Os últimos muros da falta de transparência em relação às tarifas começam a cair com as medidas de redução de preço das passagens que vêm sendo anunciadas em várias cidades do país e com a inclusão de lideranças dos manifestantes nas mais recentes reuniões para enfrentar a situação. Entre outras coisas, é para isso que serve o povo nas ruas, para forçar os limites da institucionalidade.


6) A segurança pública está despreparada
A incapacidade da polícia em lidar com o movimento nas ruas ficou patente em todo o país. Há mesmo um consenso que aponta para o crescimento das manifestações em razão do comportamento violento e desproporcional das forças repressivas nos primeiros embates. A reversão do discurso, inclusive nos meios de comunicação, se deveu aos abusos, que, é bom frisar, fizeram com que as pessoas nas áreas nobres da cidade fossem tratadas como se estivessem na periferia. A polícia brasileira não tem tradição de manifestações democráticas e vê no outro sempre o inimigo a ser combatido. Os manifestantes, por sua vez, não enxergam os policiais como servidores públicos encarregados da ordem, mas como agentes de força, marcados por uma visão estrita de legalidade e democracia. A demonização dos movimentos sociais sempre bateu na tecla do direito à propriedade. A decisão recente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, provocada por ação da prefeitura da capital, ao tentar impor limites às manifestações em nome do livre fluxo de veículos nas ruas, é tributária dessa visão patrimonialista do espaço público. A política de segurança não é uma coleção de táticas e estratégias de enfrentamento, mas uma definição de parâmetros de comportamento social que permitam a liberdade. Nesse sentido, trata-se, em primeiro lugar, de uma ação política, não técnica. Entre os aspectos a serem observados está a integridade das pessoas (acima da defesa do patrimônio) e a capacidade racional do uso da força, discriminando manifestantes de bandidos. Estabelecer uma prática para o todo a partir da exceção é um equívoco ético de consequências desastrosas. A polícia não é monopólio dos governos ou partidos instalados no poder, mas corporação de defesa da sociedade. A lógica de buscar culpados (vigente em outros movimentos sociais há décadas) mostra seu limite nas recentes manifestações. A forma brutal como agiu a polícia no primeiro momento e a tentativa de espelhar as ações futuras nos parâmetros do Exército são equívocos a serem evitados urgentemente, sob risco de agravamento das tensões e do incentivo ao aparecimento de grupos que se dão bem nesse contexto. A agir assim, as badernas não serão subproduto dos protestos, mas monstros gerados pelas forças repressivas, que escolhem assim seus “melhores” inimigos. Para uma prática democrática de protesto é preciso uma polícia igualmente democrática.


7) As pessoas sabem o que não querem
Talvez a maior de todas as constatações seja exatamente o esgotamento das opções disponíveis de exercício da cidadania. Se a sociedade brasileira, nos últimos anos, vive uma polarização entre PT e PSDB, entre um projeto neodesenvolvimentista e um programa de aprofundamento das reformas liberais (em termos dos próprios partidos), muitos cidadãos não se sentem representados. Menos pelas diferenças do que pelas semelhanças na forma de exercer aqueles propósitos, a partir de jogos considerados de cartas marcadas pela prática real da corrupção. Nesse conjunto de autoexcluídos, os jovens são expressivos. Sabem o que não querem e começam a articular, em passos objetivos e práticos, uma agenda própria, com novos modelos de organização e vocalização. A expulsão das bandeiras partidárias em manifestações é um dos sintomas dessa recusa dos caminhos habituais. E é bom lembrar que o espectro partidário não se limita ao par PT/PSDB e que a possibilidade de organização política não passa necessariamente por essa via. Além disso, o modelo de instant mob, ainda que singular, não garante mudanças estruturais, ainda que se mostre eficiente para conquistas específicas. Mas há outros movimentos em ação. O campo da chamada esquerda popular, por exemplo, ligado aos movimentos sociais, para se diferenciar das disputas partidárias que perderam o horizonte das transformações mais profundas, tem investido num caminho mais consistente, que envolve inclusive as tarefas de formação política e ações de base. O que vemos hoje nas ruas, no entanto, parece partir de um ponto de ruptura. Começar pela negação – o que não queremos – é também uma maneira de se afirmar. Como no poema do português José Régio (1901-1969): “Não sei por onde vou,/ Não sei para onde vou/ Sei que não vou por aí!”. Ser apartidário não é ser apolítico. A lição fundamental é clara: não há saída fora da política.

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