Protestos podem abrir caminhos para a política, com atuação que rompe com as hierarquias

por Ângela Faria 22/06/2013 00:13
Alex Almeida/reuters
(foto: Alex Almeida/reuters)
Tachada de apática, despolitizada e escrava de seus computadores, a juventude brasileira ocupa as ruas, atropelando partidos, ideologias, governantes, intelectuais e comentaristas políticos. Sobrou para todo mundo: petistas, tucanos, neocons, esquerdistas, progressistas e reacionários. O gigante pode até ter se levantado neste outono cívico, mas, na verdade, está acordado há muito mais tempo do que se imagina, adverte o sociólogo Juarez Dayrell, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Coordenador do Observatório da Juventude – programa de ensino, pesquisa e extensão da UFMG – e autor do livro A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude (Humanitas/UFMG), Juarez ressalta que a realidade tromba de frente com a imagem socialmente construída da moçada do século 21, até poucos dias atrás associada à alienação, ao individualismo consumista e à indiferença em relação aos problemas sociais. Praticamente “uma vergonha” para pais e tios que engrossaram as famosas passeatas dos anos 1960, os comícios das Diretas Já e se pintaram de verde e amarelo no movimento Fora Collor. Na segunda-feira, o professor, de 59 anos, acompanhou os 20 mil indignados que pararam a Praça Sete, caminharam 10 quilômetros até a Pampulha e enfrentaram a polícia para protestar contra os R$ 26,6 bilhões gastos para trazer a Copa do Mundo ao Brasil, enquanto faltam vagas em hospitais, transporte digno e educação de qualidade.

Essa imensa multidão de jovens que sai às ruas do país não é fruto do acaso, adverte Juarez Dayrell. Há vários anos ele acompanha atentamente a movimentação dos jovens na Grande BH. Enumera a ação de coletivos voltados para diversas áreas de interesse. Há, por exemplo, o movimento Atingidos pela Copa, que contesta a gastança com megaeventos esportivos em detrimento dos setores básicos. As articulações pró-moradia, como a ocupação Dandara, entre outras. Fez sucesso a mobilização Praia da Estação, em que a rapaziada lutou contra as regras estipuladas pela Prefeitura de Belo Horizonte para a utilização de espaços públicos na capital, sobretudo a Praça Rui Barbosa. Há anos, rappers, artistas e estudantes se mobilizam em prol do Duelo de MCs, evento de hip-hop nacionalmente respeitado, que conquistou seu espaço embaixo do Viaduto de Santa Tereza em meio a conflitos com a polícia e as autoridades. Setores jovens de partidos também se articularam na capital.

Juarez usa expressão bem mineira para tentar definir a explosão de cidadania dos últimos dias: fogo no monturo. Ninguém vê a chama, mas ela está lá embaixo do capim. O fogo surge lá adiante, finge que se apagou e volta como vistosa labareda. Apague-se um incêndio desses...

As redes sociais são fundamentais para a mobilização dos jovens, mas Juarez Dayrell pondera: “Não há internet sem gente. Ela apenas potencializa o que já existe de concreto”. Há muito tempo pesquisas realizadas pelo Observatório da Juventude vêm detectando a incapacidade de partidos, do movimento estudantil – muito partidarizado – e de sindicatos conquistarem os jovens como antigamente. Hoje, a moçada mais articulada prefere se integrar a coletivos.

“Há a negação da hierarquização por parte desses coletivos. Observa-se ali a opção pela horizontalidade: todos estão no mesmo patamar. Por um lado, isso é positivo, pois força a participação mais democrática de todos. Por outro, traz um certo risco, pois a direção se torna mais complexa”, explica Juarez.

Para o coordenador do Observatório da Juventude, a ação política dos jovens indignados brasileiros difere totalmente de paradigmas que norteavam as gerações anteriores. “Eles nasceram na era da tecnologia socializada. Tempo e ritmo são muito mais velozes”, ressalta. A imagem é preponderante: a câmera do celular tanto registra obsessivamente cenas banais do cotidiano quanto as imagens de PMs atirando balas de borracha e spray de pimenta no rosto de estudantes e jornalistas, assim como vândalos depredando prédios públicos durante as manifestações. Tudo praticamente em tempo real. A tecnologia é o coquetel molotov da moçada do século 21.

A violenta repressão aos jovens paulistas, registrada no dia 13, repercutiu quase on-line em todo o país, potencializada por virais com cenas da pancadaria inteligentemente conectadas a jingles de campanhas publicitárias pró-Copa das Confederações. A quinta-feira, 13, certamente já faz parte da história do Brasil.

Cidade

Juarez Dayrell destaca a importância da reconquista da cidade para os jovens brasileiros. Praças, avenidas, viadutos e ruas são ocupados diariamente. A mobilidade urbana é um dos pilares dos protestos. “Não é à toa que a reivindicação de passe livre detonou a mobilização. Nos últimos anos, houve movimentos de rua ligados à questão da mobilidade urbana em vários pontos do país: Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e no Recife, por exemplo. Lembre-se de que, há pouco tempo, a Câmara Municipal de Belo Horizonte foi invadida por defensores do passe livre”, acrescenta o sociólogo. Não por coincidência, uma das reivindicações dos jovens mineiros é a conclusão do metrô da capital.

O movimento Praia da Estação, em Belo Horizonte, está intimamente ligado à questão urbana, assim como a irritação dos jovens com a demarcação do “território da Fifa” nas imediações do Mineirão, por onde o cidadão – inclusive o morador – é impedido de circular livremente nos dias de jogo. Juarez Dayrell reforça a importância da cidade como espinha dorsal da mobilização em BH, sobretudo diante da crescente privatização do espaço, com a proliferação de shoppings, condomínios e muros.

Na capital mineira, o período momesco tem sido marcado por quedas de braço entre a moçada que organiza os blocos de carnaval e a prefeitura, acusada de cercear o direito à folia. Esse embate forçou negociações políticas. O renascimento do carnaval de rua de BH é fruto da ação de coletivos, artistas, foliões e jovens integrantes do movimento Praia da Estação. Política compartilha com alegria.

Os indignados do século 21 fazem política de forma diferente de seus pais. Em vez da racionalidade dos militantes estudantis de outrora, estão presentes a festa e a afetividade – tão reprimida na militância política dos esquerdistas belo-horizontinos Dilma Rousseff, Fernando Pimentel e Marcio Lacerda. O coordenador do Observatório da Juventude chama a atenção para a alegria dos protestos, os cartazes bem-humorados, narizes de palhaço e máscaras como aquelas usadas na Europa e nos Estados Unidos. “É uma festa política de cidadania”, resume Juarez Dayrell.

Patriotismo

O sociólogo diz que a movimentação dos indignados representa um desafio para as escolas, exigindo dos professores redobrada atenção para lidar com as especificidades desta nova geração. “A escola tem que investir mais nesse aluno, reconhecer o jovem que existe naquele estudante.” Para o coordenador do Observatório da Juventude, é preciso urgentemente preencher uma lacuna no cotidiano escolar: a fragilidade do sentimento de pertencimento ao país, à nação.

“A ditadura militar se apropriou de boa parte do imaginário cívico. Ser patriota representa quase uma vergonha para nós. É preciso mudar isso”, adverte Juarez Dayrell. Durante as manifestações, destaca, já se observa a disposição dos jovens em suprir essa lacuna: bandeiras, hinos, rostos pintados de verde e amarelo. Se há crítica feroz à corrupção e às mazelas do país, nunca falta o coro mezzo “futebolístico”, mezzo patriótico: “Eu sou brasileiro/ Com muito orgulho/ Com muito amor”.

Neste outono cívico, impressiona a multidão de garotos e garotas praticamente pré-adolescentes, de 13 a 16 anos, que têm saído às ruas, muitos deles vestindo uniformes do colégio. “Não há sala de aula que supere essa experiência de cidadania”, diz Juarez Dayrell, explicando que momentos assim são marcos fundadores para o jovem, pois unem paixão, ação e história.

O coordenador do Observatório da Juventude considera impossível prever o futuro desse movimento e não se arrisca a dizer que bandeiras – entre tantas reivindicações – vão vingar. Para ele, uma coisa é certa: a reconquista da rua como espaço de expressão. Não por acaso, dois cartazes fazem sucesso: “Saímos do Face”, avisa um, para o outro convidar: “Vem pra rua”. Falar nisso, as gerações que lutaram contra a ditadura, pela redemocratização e para pôr Collor para fora do Palácio do Planalto estão convidadas: hoje, às 13h, a Praça Sete será do povo.

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