Movimento político que toma conta das ruas traz para a cena pública novos personagens

As demandas também são outras, assim como as formas de organização que evidenciam o descompasso do discurso político tradicional com a realidade da juventude

por João Paulo 22/06/2013 00:13
Euler Júnior/EM/D.A Press
(foto: Euler Júnior/EM/D.A Press)


Os protestos que varreram o Brasil nas últimas semanas convocaram muitas opiniões, análises e interpretações. Muita gente aponta para a necessidade de entender a voz que vem das ruas, como se tratasse de algo muito novo, portanto ainda fora do hábito mental e político da sociedade. Assim, ao lado de truísmos como a defesa do direito de protestar como exercício legítimo da democracia e da tarefa de separar o que consideram legítimo dos abusos, ficou no ar, com o cheiro de gás lacrimogênio e com a perplexidade da direita e da esquerda convencionais, uma sensação de que há uma nova tarefa delegada ao futuro. Não é verdade. A voz das ruas não foi nem rouca nem inescrutável, mas límpida. É preciso ter ouvidos de ouvir. E honestidade para reconhecer os limites expressos na manutenção de práticas perniciosas do nosso sistema político e da potente estrutura geradora de injustiça social.


1) Democracia direta não é novidade
A tradição política ocidental é marcada pela representatividade, a partir de escolhas democráticas de consulta popular. É um bom princípio, mas não basta. A combinação entre democracia representativa e democracia direta precisa ser balanceada a todo momento. A democracia é uma forma de invenção permanente, e não cumprimento de protocolos. A livre manifestação não é democrática, ela é parte integrante do núcleo da democracia. Em alguns momentos, há crises de legitimidade na área da representação. Os eleitores não se sentem contemplados pelas decisões tomadas em seu nome. Nessa hora, é fundamental que a crise se traduza em ações diretas, de ocupação, protesto e constrangimento, como as vaias. O caso da Copa das Confederações e da Copa do Mundo (em 2016 será a vez das Olimpíadas) é exemplar e por isso está tão em evidência. Os cidadãos não concordam com as decisões (investimentos, cerceamentos de liberdade, verticalização das decisões, submissão a uma entidade lucrativa, aprovação de uma espúria Lei Geral da Copa, que conflita com a legislação vigente, superfaturamento de obras, etc.) e, como não podem seguir a regra leniente de forçar seus representantes, já que o rolo compressor foi acionado, cabe a legítima e indispensável ação direta da população. É o mesmo que se viu na tentativa de inviabilizar o funcionamento da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que teve sua presidência entregue a um homofóbico confesso e, portanto, incapacitado de exercer a função. Como o próprio Legislativo foi incompetente para resolver o impasse, mais uma vez a democracia direta é convocada – nesse caso, com ações justas de constrangimento e tentativa de inviabilização do funcionamento do colegiado, que, no entanto, se recompõe ao menor refresco (como se viu com a recente aprovação do projeto da “cura gay” pela comissão). É preciso ainda destacar que o caráter direto da democracia não se liga apenas às manifestações públicas. Há muito o tecido institucional brasileiro vem jogando para escanteio o orçamento participativo, as conferências setoriais e os conselhos populares e paritários, que se perdem entre o aparelhamento e a triste vocação homologatória de políticas de Estado.


2) Protestos respondem ao seu tempo
Não adianta comparar o que está ocorrendo no Brasil – e de resto em todo o mundo – com outros momentos históricos, em busca de uma valorização da memória em nome do desprezo à novidade. Felizmente, não vivemos mais uma ditadura. E, em grande parte, devido exatamente à reação social. Se as mobilizações de natureza mais universal, como lutar pela democracia contra a ditadura, tiveram papel importante, nem por isso todo protesto social tem que se basear naquele modelo. Aquela conjuntura histórica unificava diferentes forças sociais em nome de uma conquista comum. Assim, se anulavam divergências ideológicas, fazia-se conviver sindicatos e igrejas, apelava-se para um sentimento maior capaz de atrair grandes multidões. Para a nova conjuntura, novos modelos de participação. A sensação da conquista democrática fez com que certa sensação de consenso tomasse conta de parte da sociedade, que passou a considerar a política algo fora de sua ação, mesmo que muitos movimentos sociais se mantivessem ativos e, exatamente por isso, fossem demonizados pelas forças conservadoras e por parte da imprensa, que sempre preferiu entender política como conchavos de bastidores e não a cena aberta do teatro social. Assim, sobretudo os jovens assumem novo caminho político, que desliza da representação oficial em nome da manifestação em torno de bandeiras específicas, mais próximas de seu cotidiano. Se a motivação é singular, as formas de se manifestar também o serão. É por isso que, em vez de se ocupar em reuniões prévias ou busca de consensos e identificação de lideranças que falem em nome do movimento, eles apostam na espontaneidade e em formas de convocação mais anárquicas e descentradas.


3) A política é outra nas redes
As redes sociais são a maior novidade (nem tão nova assim) na política. Elas têm potencial de mobilização nunca visto e são capazes de atrair atores que até então escapavam das questões sociais e econômicas em nome do investimento na individualidade e no consumo. Além da força de convocação, as redes sociais modulam o estilo de política que hoje se estabelece na sociedade. Há aspectos positivos inegáveis, sobretudo pela capacidade de inclusão de sujeitos até então alienados do jogo político global. Outra novidade que precisa ser festejada é a força para descobrir as questões que, a princípio particulares, tornam-se bandeiras capazes de mobilizar grandes grupos de pessoas. Não por acaso o transporte público se tornou a bola da vez. Trata-se de área em que se conjugam problemas graves e sintomáticos com escolhas políticas e econômicas claras e de interesse de grupos bem localizados e com forte trânsito nas estruturas de poder. Se a internet ajudou a criar um novo sujeito político, que deixou o computador de lado e foi para as ruas, ela também carrega problemas que precisam ser enfrentados para que os atores, de fato, conquistem maior significação na arena pública. Entre as barreiras típicas das redes sociais está o desejo de falar muito maior que o de ouvir. A mesma democracia que precisa ouvir os jovens espera que os jovens se abram para ouvir outras vozes sociais. Quem frequenta as redes sabe que se fala muito e se escuta pouco fora do próprio ambiente defeso de “seguidores” ou “amigos”. A democracia é um cenário de conflitos e negociações possíveis, nunca de “inimigos”. Talvez esteja aí o papel dos meios de comunicação, que deveriam funcionar como essa arena de contradições, aberta às várias possibilidades sociais, e não eco de apenas uma visão do mundo.

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