Uruguaio abre coleção com mestres e novas vozes da literatura hispano-americana

A iniciativa reunirá mestres da vanguarda, narradores consagrados e o que, talvez, seja o melhor: novos autores da literatura hispano-americana

por André Di Bernardi Batista Mendes 15/06/2013 00:13
Monrovia/Divulgação
Mario Levrero tem a primeira obra traduzida para o português na coleção dirigida por Joca Terron (foto: Monrovia/Divulgação)
Organizada pelo escritor e editor brasileiro Joca Reiners Terron, a coleção Otra língua, da Editora Rocco, tem uma missão especial, promissora e ambiciosa: trazer o que há de mais inventivo e original em língua espanhola. A iniciativa reunirá mestres da vanguarda, narradores consagrados e o que, talvez, seja o melhor: novas vozes da literatura hispano-americana. Cada título, diga-se de passagem, ganhará posfácios assinados por renomados autores brasileiros. Não deve demorar para a coleção ocupar um lugar de referência para o que há de melhor da produção literária da América Latina. Abrem a coleção, sem pompa e circunstância, mas em grande estilo, os romances Deixa comigo, do uruguaio Mario Levrero (1940-2004); e Asco, do salvadorenho Horacio Moya. Outros títulos estão previstos para chegar às livrarias até o fim do ano: Como me tornei freira, de César Aira; Os lemmings e outros, de Fabian Casas, e Águas-fortes cariocas, de Roberto Arlt.

Outra língua, outra sintaxe, outros labirintos fonéticos. O mesmo mistério. Outra postura, outra cultura, outras vozes. O mesmo fascínio. Pois esta “outra” literatura ganha, agora, uma espécie de ponte que religa, que promove encontros mais que necessários. O prazer da descoberta só não é maior que o prazer da leitura em si. Deixa comigo, publicado em Montevidéu nos anos 1990, é um livro duvidoso, que prefere as sombras, os percalços, que contraria todos os princípios. Mario Levrero fala de sonhos. Mario Levrero fala de coisas essenciais para a vida, dentre elas, a literatura.

Nosso herói tem mais de 50 anos, está bem acima do peso, fuma demais, separou-se de sua esposa, mas o danado ainda acredita na redenção através da arte, do próprio fazer literário. Em apuros financeiros, ele recebe uma missão estranha. Ele deve viajar ao interior do Uruguai à procura de Juan Pérez, de quem possui uma única in1formação: enviara dias antes, sem endereço de remetente, o manuscrito de um romance genial a uma editora. Se o protagonista de Deixa comigo encontrar Juan Pérez, receberá boa quantia em dinheiro e terá seu novo livro publicado. Ele parte, assim, para Penurias, minúscula cidade no interior dos interiores. Numa linguagem simples e direta, Mario Levrero parece perguntar, parece intuir, pelas metáforas, encontros e desencontros de seu personagem, sobre a sempre instável condição do escritor, do artista no mundo.

Mario Levrero monta um cenário, um clima ao mesmo tempo asfixiante e exuberante. Uma praça das mais comuns, com bancos, pinheiros, dentro do ermo, aos olhos de um escritor torna-se um outro sítio, propício a vertigens e descobertas. No mais alto sigilo, tudo indica (o silêncio, a solidão), tudo sugere (as idas e vindas), com sopros de neblina, possibilidades que, no mais das vezes, são, tornam-se, apenas, po.

Mas tudo é forte, em sua essência boa de mistérios. Uma prostituta incrível, uma anciã e até as inúteis formigas. Tudo tem coração e tudo carrega um sopro viável, tudo carrega um sopro de vida que é captado – de relance, como vento – pelos olhos atentos do escritor. Mal nasce o dia e já é noite, para bem nascer o dia e por aí vamos, numa dialética feita de perdas e ganhos (muito mais perdas do que ganhos). Relancear é dirigir rapidamente os olhos a. Relance, segundo dicionários, pode ser também aquele passe ou lance improvisado que o toureiro executa. Para soltar todos os bichos. Escrever também pode ser isto: a arte de tourear, de fazer correr os touros.

Nefelibatas, vivendo nas nuvens, os escritores sofrem de alturas e profundidades. Mario Levrero escreve solto, sem prepotência, batucando, (re)inventado cordas, acordes e barulhos que moram no oculto, nas palavras. O verbo serve também para acordar o novo, serve para bem fazer dormir o desgastado. Ganham todos neste processo de escolhas, neste processo cheio de espinhos e pedras. Mario Levrero ficaria no limbo, nas extremidades distantes, não fosse a iniciativa da coleção organizada por Joca Terron. Toda vanguarda preza, sofre por um processo feito de sementes. A literatura também é isso, como sugere o personagem de Deixa comigo, “o germe de novos valores e ali existiam razões de viver para muitos”.

Mario Levrero esteve escondido até a publicação póstuma, em 2005, de Um romance luminoso, obra que rapidamente tornou-se um clássico em seu país. O escritor tem um grande leque de publicações: manuais de parapsicologia, fotografias, cartuns, palavras cruzadas, histórias em quadrinhos, quebra-cabeça e, claro, contos e romances. Trata-se, sem sombra de dúvidas, de um dos mais interessantes autores hispano-americanos das últimas décadas. Deixa comigo é a primeira tradução para qualquer língua de um romance de Levrero.

Três perguntas para...
Joca Reiners Terron Escritor e editor

Como se deu o processo de escolha, como foi o processo de descoberta dos escritores da coleção? Como surgiu a ideia da coleção?
Leio assiduamente literatura hispano-americana desde a publicação de Ricardo Piglia, Luís Gusmán e Virgilio Piñera por Samuel Leon na Iluminuras, no fim dos anos 80, começo dos 90. Piglia, aliás, é o meu Borges particular, pois passei batido por Cortázar e inclusive por Borges e ele acabou cumprindo esse papel de formador. A publicação de latinos não canônicos no Brasil é tão rara a ponto de exigir comemoração a cada vez que um autor fura o bloqueio. Lezama Lima na Brasilense, Onetti na Companhia das Letras no mesmo período ou mais recentemente a coleção Prosa do observatório dirigida por Davi Arrigucci Jr. na Cosac Naify, tudo isso inspirou a Otra língua, cuja ambição é atualizar esse movimento de aproximação. Tudo a ver com a Rocco, que publicou Bioy Casares e Carlos Fuentes lá nos seus primórdios.

O que existe de mais inventivo e original na literatura espanhola e quais são os pontos de confluência com a literatura brasileira?
 Alguns dos autores que mais cometem riscos na atualidade escrevem em espanhol, como o peruano-mexicano Mario Bellatin e o argentino César Aira. A obra do uruguaio Mario Levrero, morto em 2004, é tão surpreendente que só agora começa a ser reeditada. Não creio que nossa literatura tenha muito a ver com a desses países, pois aqui o surrealismo influiu pouco, enquanto que por lá o realismo não é tão hegemônico.

O que propõe a vanguarda, qual é a proposta destes escritores tão inventivos, diferentes e tão fundamentais?
A vanguarda latino-americana do período modernista é mais conhecida no Brasil por seus poetas, como Oliverio Girondo, César Vallejo etc., ou de teóricos como Ángel Rama, por exemplo. Autores fundamentais como o chileno Juan Emar ou os peruanos Martín Adán, Braulio Arenas e Pablo Palacio permanecem inéditos. Por outro lado, autores mais recentes como os citados anteriormente conseguiram escrever ficção sem estar atados às regras do entretenimento obrigatório que rege a literatura de língua inglesa.

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• De Mario Levrero
• Tradução e posfácio de Joca Reiners Terron
• Editora Rocco
• 160 páginas, R$ 27

ASCO

• De Horacio Moya
• Posfácio de Adriana Lunardi
• Editora Rocco
• 112 páginas, R$ 27

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