O direito de revolta

A movimentação popular tem crescido, dando novo colorido à política

por João Paulo 15/06/2013 00:13
Nelson Almeida/AFP
A democracia, o povo vem ensinando, é ordem mais conflito (foto: Nelson Almeida/AFP)
O povo está na rua. Em muitas cidades brasileiras e em diferentes países, pelos mais variados motivos, a movimentação popular tem crescido, dando novo colorido à política. Depois do engodo do fim da história, na celebração do liberalismo como estágio final da civilização, foi crescendo a onda de protesto que hoje se espalha e dinamiza as relações sociais.

Por trás dessa situação está a mudança de percepção acerca do que é democracia. Durante muito tempo, convencionou-se conceber a democracia como o regime da ordem, no qual, de tempos em tempos, se procedia a alternância do poder sem que os princípios básicos da organização social e da economia fossem contestados.

A democracia, o povo vem ensinando, é ordem mais conflito. Sem contradição não há democracia de verdade. O regime democrático não é aquele em que a noção de ordem precisa ser sempre questionada, em nome da expansão de direitos e da criação de novos contextos de liberdade. Se para o liberalismo a história acaba, para a democracia ela é perpétua criação.

Foram os protestos, de toda natureza, que acabaram com a escravidão, deram direito ao voto às mulheres, instituíram as leis trabalhistas e promoveram a reforma agrária na maior parte dos países (o Brasil, é claro, de fora). A deixar o barco correr na obediência irrestrita às leis, mais que paralisar a sociedade, eternizam-se injustiças. Ou alguém acha que proprietários de terra vão ceder suas fazendas em nome da distribuição de renda?

O direito de revolta é um dos esteios da democracia. Por isso é preocupante a condenação moralista das manifestações que hoje cobram demarcação de terras indígenas, voltam-se contra o aumento de tarifas públicas, paralisam a produção em busca de melhores salários, exigem educação pública de qualidade, questionam a legitimidade de um parlamentar homofóbico. São todas ações que ampliam o patamar de direitos, portanto, democráticas.

O que é de se estranhar não são os movimentos em si, mas o fato de serem poucos para tanta injustiça. Essa dúvida não é nova. Já no século 16, em 1548, um escritor francês de 18 anos, Etinenne de la Boétie, publicou um pequeno livro que ainda hoje se mostra atual: Tratado da servidão voluntária. O jovem cientista político (a profissão ainda não existia e talvez por isso ele tenha acertado tanto) queria saber por que as pessoas obedeciam aos tiranos, ainda que isso significasse prejuízo claro para o servo obediente.

A resposta de La Boétie, em vez de apontar para a violência da tirania da monarquia de seu tempo, procura as razões nas próprias pessoas: elas abrem mão da liberdade para afirmar o jugo do tirano. Obedecemos porque nos ensinaram que isso é certo. Há um esquecimento da liberdade, e isso dá ainda mais poder ao tirano. A servidão não é resultado do medo ou da opressão externa, mas se alimenta voluntariamente na transferência do poder ao outro. Dito de outro modo: somos nós que alimentamos os tiranos de poder. O outro só manda porque permitimos.

Há uma rotina da opressão que faz com que o cidadão se orgulhe em obedecer. É a mesma operação que se percebe quando, em outro contexto, as pessoas defendem que se paguem dívidas impagáveis (como a manutenção do superávit primário, mesmo com tanta necessidade interna); que se obedeçam a regras irracionais e injustas; que se aceite com naturalidade a proliferação de áreas vip em equipamentos públicos. A lista continua: a defesa da propriedade privada, mesmo que tenha origem em crimes históricos (como a escravidão, por exemplo) e signifique afronta à justiça social; a revisão do passado recente em nome de uma anistia que atropela crimes contra a humanidade do qual fomos testemunhas; a defesa da internação compulsória de dependentes químicos em nome da assepsia social.

La Boétie está cada vez mais atual. Era de se esperar que, numa sociedade mais livre, a servidão voluntária se inviabilizasse, pois os cidadãos teriam condições de perceber a tirania. No entanto, a mesma sociedade que entronizou a liberdade alimentou a ideologia que permite esconder sua inspiração por trás de consensos fabricados. É exatamente por isso que o dispositivo La Boétie é importante: ele aponta novo rumo para a esquerda e para as políticas emancipatórias. Mais que denunciar a violência das estruturas, é preciso despertar a revolta no indivíduo.

Biografia sem vida


Na semana passada, chegou às livrarias Dirceu, a biografia, do jornalista Otávio Cabral (Editora Record, 362 páginas). Livro esperado, não resiste à primeira leitura atenta e decepciona. O personagem, simpatia ou antipatia à parte, merecia mais. José Dirceu foi protagonista de momentos importantes da vida pública brasileira a partir dos anos 1960: a liderança do movimento estudantil; a organização da luta contra a ditadura na clandestinidade; a criação do maior partido de massas do país, o PT; a eleição de Lula e a mudança do mesmo PT em direção a uma vertente mais palatável às convenções históricas da burguesia e da classe média; e, fechando o arco temporal, o julgamento e a condenação no Supremo Tribunal Federal pelo chamado mensalão. Uma pauta e tanto.

Desde Joaquim Nabuco, com Um estadista no Império, sobre Nabuco de Araújo, o Brasil tem trabalhos de altíssimo nível na área. Biografias de políticos são entradas poderosas na compreensão da complexidade da sociedade e da história. São livros que, bem estruturados, permitem dar conta tanto da dimensão pública quanto pessoal. Como se sabe, esses dois universos nunca se separam quando se trata de política. Mais recentemente, a boa safra de biografias de homens públicos (não apenas de políticos profissionais) – como Getúlio, de Lira Neto; João Goulart, de Jorge Ferreira; Marighella, de Mário Magalhães; Chatô, de Fernando Morais; JK, de Claudio Bojunga, Mauá, de Jorge Caldeira entre outras – reforça um padrão que permite ao leitor cobrar sempre qualidade.

Não é o que se encontra em Dirceu, a biografia. E por muitas razões. A primeira delas é de ordem técnica. O jornalista não fez bem o dever de casa. A checagem não é exaustiva e as fontes reduzidas. Ele diz que entrevistou 63 pessoas, mas não mostra quem são (o que os outros biógrafos fazem questão de apresentar). Muitas vezes, aceita depoimentos de informantes suspeitos, como Roberto Jefferson, mestre em dizer e desdizer de acordo com o vento das circunstâncias. Além disso, seu maior pecado jornalístico: toma fontes da ditadura militar (inquéritos) como informações oficiais, sempre que se trata de diminuir o biografado.

Com isso, momentos marcantes da vida brasileira são menosprezados, como a resistência estudantil, que parece apenas uma bagunça inconsequente. Para diminuir a importância histórica desse período, Otávio Cabral apela para acusações moralistas (chegando ao ridículo de dizer que a polícia encontrou pílulas anticoncepcionais em Ibiúna, quando derrubou o congresso da UNE e prendeu José Dirceu). O desvio para o moralismo perpassa toda a narrativa, com insinuações de homossexualismo (para logo em seguida voltar atrás) e don-juanismo patológico. Os casos amorosos do personagem são citados como homólogos de certa infidelidade no campo das ideias. Algo, no mínimo, bobo e desnecessário.

Otávio Cabral não pode ser chamado de biógrafo. Seu livro é um cozidão, e nem muito benfeito, além de pouco legível. Tem, talvez como inspiração de sua origem institucional, o vezo de defender teses antes de chegar aos fatos. O propósito era apequenar José Dirceu, fazer dele um criminoso anunciado desde os comportamentos de rapaz, uma figura menor. Com isso perdeu um personagem e tanto. Ficou um livro menor.

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