Frei Chico lança dicionário com 8,5 mil verbetes sobre a religiosidade popular brasileira

Obra surgiu da relação do padre holandês com a gente simples do Vale do Jequitinhonha

por Sérgio Rodrigo Reis 08/06/2013 00:13
Lira Marques/divulgação
(foto: Lira Marques/divulgação)
Em 1967, quando frei Chico veio da Holanda para o Vale do Jequitinhonha, aquela região de Minas Gerais era considerada um dos três lugares mais pobres do mundo. Diante de tanta miséria, o holandês descobriu riqueza cultural sem precedentes. “Aquilo deu sentido à minha permanência no Brasil”, revela o frade franciscano. Em seus 10 anos como pároco da diocese de Araçuaí, ele contabilizou 15 mil folhas de registros da cultura do povo relacionada à fé e à experiência espiritual. Somado a pesquisas realizadas na Europa, esse vasto material foi a base de um ambicioso projeto, o Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Com 1.150 páginas, a obra de referência chega agora ao público, reunindo 8,5 mil verbetes, 6 mil notas de rodapé e 350 ilustrações.

Lançado pela Editora Nossa Cultura, o livro surgiu por acaso na vida de Francisco van der Poel, o popular frei Chico. “Para poder servir, havia de conhecer aquele povo”, resume ele. A inspiração veio do canto de Filó, a cozinheira da casa paroquial, em Araçuaí. Era algo belo e incomum. “Filó gostava de cantar e resolvi gravar as músicas em fitas cassete, as mesmas que serviram para o repertório do Coral dos Tangarás. Há 43 anos, tive a honra de fundar o grupo, que continua até hoje”, orgulha-se ele.

As viagens a municípios da região de Araçuaí – “em lombo de burro velho, nos fins de semana” – trouxeram novas descobertas. A amizade com a ceramista Maria Lira Marques está entre elas. “Lira abriu as portas da sabedoria popular para mim, o estrangeiro que acabara de chegar”, conta o religioso. Frei Chico viveu 10 anos naquela região. Nesse período, cuidou de registrar as peculiaridades do povo simples com olhar antropológico e visão humanista. “Quando cheguei a Araçuaí, tudo era tão diferente da minha terra, a língua, a cultura, a maneira de tratar as doenças... Ouvia aquela gente se referir a problemas de saúde como carne quebrada, vento virado, espinhela caída e mau-olhado. Comecei a ficar curioso”, diz frei Chico. Cada nova descoberta dava origem a uma anotação.

O Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil reúne essas descobertas. “Não tinha parâmetro para ele, não há outro livro parecido. Precisei inventar uma fórmula. Coloquei, por exemplo, todo o depoimento do povo – entrevistas, cantos e histórias – em itálico para o leitor perceber onde está a parte mais importante”, informa. À medida que o projeto ganhou consistência, o frade percebeu que em Minas não havia pesquisadores com interesse semelhante. A certeza do pioneirismo do dicionário se confirmou depois da aproximação de Chico com o folclorista Câmara Cascudo e com Carlos Rodrigues Brandão, antropólogo da Universidade de Campinas (Unicamp), responsável pela introdução do livro.

Inicialmente, frei Chico pensou em escrever um manual da religiosidade popular. Tentou esboçar algo nessa linha, mas concluiu que não seria possível sintetizar cultura tão vasta. Assim surgiu o dicionário. “A função do dicionarista não é resolver problemas, mas registrar. Aprendi que não é a lógica que manda, mas o bom senso e a busca de coerência. Preocupei-me não em fazer uma síntese, mas algo orgânico”, detalha. A intenção é conduzir o leitor por uma espécie de viagem rumo ao universo do povo. “As pessoas começam a ler e, de repente, já estão com os 10 dedos no dicionário, marcando links de interesses”, afirma.

Nos últimos 40 anos, frei Chico pesquisou dentro e fora do país assuntos ligados à cultura e fé popular. Chegou à Europa, vasculhou antigos arquivos de Portugal em busca de pistas que pudessem elucidar questões ligadas aos saberes do povo humilde do Vale do Jequitinhonha. “Consultei livros de história, de farmacopeia medieval e até de bruxaria. Reuni 2 mil volumes. Quando concluí o dicionário, doei esse material para a biblioteca da PUC Minas, em Belo Horizonte”, informa o frade.

A pesquisa demorou, mas o livro ficou do jeito que frei Chico sonhou. “Continuo dizendo: o resultado é apenas o começo do princípio de alguma coisa”, garante ele. “Passei por uma reciclagem de ideias. Deparei-me com saberes marcantes e eles mudaram a minha noção de historiografia, a maneira de me relacionar com Deus e com o próprio significado da palavra cultura.” Não é à toa que os verbetes preferidos dele explicam o significado de simples e de sabedoria.

DICIONÁRIO DA RELIGIOSIDADE POPULAR: CULTURA E RELIGIÃO NO BRASIL

De Francisco van der Poel (frei Chico) Ilustrações: Lira Marques. Editora Nossa Cultura, 1.150 páginas, R$ 290
Informações: www.nossacultura.com.br
Frutos da terra

Frei Chico convidou a ceramista Maria Lira Marques, sua mentora na viagem pelo imaginário popular do Vale do Jequitinhonha, para ilustrar o dicionário. Em 350 desenhos surgidos de pigmentos extraídos das diferentes tonalidades de terra da região, a artista imortalizou personagens populares, festas, emoções e curiosidades. “Os desenhos reforçam o caráter da obra. Lira desenha com terra. Se fosse simbolizar o livro, seria com algo como o chão. Aprendi uma coisa lá atrás com o Paulo Freire: para ajudar o povo, é preciso, em primeiro lugar, valorizar o que ele já tem – cultura, história, ideias, lideranças”, ensina frei Chico.

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O missionário

Francisco Van der Poel nasceu na Holanda, na área rural de Zoeterwoude, e entrou para o convento em 1960. Dois anos depois, ingressou no internato diocesano. Naquela época, havia 1.234 frades holandeses e um terço trabalhava como missionário em países como Índia, Paquistão, Indonésia, Japão e Brasil. O jovem frade ouviu relatos da experiência dos colegas nas Américas. Francisco chegou ao Brasil em 1967. Em Visconde do Rio Branco, na Zona da Mata mineira, assistiu pela primeira vez a um desfile de carnaval. Em São João del-Rei, participou das celebrações da semana santa. Nomeado pároco de Araçuaí, morou 10 anos no Vale do Jequitinhonha.

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