Debate sobre internação compulsória demanda engajamento da sociedade

Debate sobre a internação compulsória de usuários de drogas envolve aspectos científicos e políticos que muitas vezes ficam à mercê da ideologia e da religião. Sociedade precisa se engajar nas discussões

01/06/2013 00:13

Nacho Doce/Reuters
Cena da Cracolândia de São Paulo, um território sempre demarcado pela lógica policial e sanitária: destituição do sujeito (foto: Nacho Doce/Reuters)
 

Oscar Cirino*


Na recente discussão sobre as internações compulsórias, internações de dependentes de drogas determinadas pela Justiça, o promotor paulista Marcelo Barone propõe que coloquemos na balança: “O que é mais importante: o direito à saúde ou o direito de ir e vir?” E conclui: “O bem maior garantido pela Constituição é a vida do ser humano”. Essa questão, para a qual o promotor de Justiça já deu sua resposta, nos leva a perguntar se é possível gozar de saúde sem liberdade e se em nome da vida tudo é permitido.

Michel Foucault chamava nossa atenção, já em 1976, para o valor que a saúde adquiriu na sociedade moderna, passando a ocupar o lugar que a salvação possuía na sociedade medieval. E em nome tanto da salvação quanto da saúde se praticou e se pratica uma série de truculências e atrocidades.

 Nesse viés, Foucault destacou a emergência de um biopoder, de um controle do saber e da intervenção do poder sobre o corpo, que se exerce pela vida e a partir da vida, e não mais ameaçando de morte: “O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”.

Exemplo dessa apreensão da vida pelo poder são as internações compulsórias e involuntárias efetivadas em algumas cidades brasileiras. Elas se configuram como iniciativas que visariam a acabar com as chamadas cracolândias. Nas línguas anglo-saxônicas, o pospositivo “lândia” remete a uma região ou país, como, por exemplo, Finlândia. No Brasil, além dessa referência a um lugar, essa designação ganhou conotação com valor afetivo e pitoresco: Pagolândia, Cinelândia, Gurilândia. Já as cracolândias são difundidas como o território da sujeira, da marginalidade, da desesperança e da doença, constituindo um fenômeno social, que suscita ações impactantes e desesperadas de quem não pensa em propostas de médio e longo prazo para lidar com a situação.

Há algum tempo escutei de colega da área da saúde mental que “as cracolândias não existem”. Sua intenção com essa enunciação certamente era enfraquecer a força dessas significações reducionistas relacionadas a essa forma de perceber o fenômeno. No entanto, no campo da linguagem, a cracolândia existe e valendo-se desse pressuposto algumas igrejas evangélicas denominam sua missão de acolhimento de usuários e dependentes de crack, em Belo Horizonte e em outras capitais brasileiras, de Cristolândia – “pronto-socorro para os que buscam libertação”.

Não se trata apenas de uma astúcia de linguagem, mas de iniciativa, com repercussão social, efeito da dispersão provocada pelo combate policial às cracolândias e da anêmica incidência das políticas públicas de saúde e outros setores. Os refugiados e desassistidos dessas ações encontram nesse misto de igreja e centro comunitário, que funciona 24 horas em regiões centrais das capitais, “alimento espiritual” e material (refeições, banho, roupa limpa). Como pensar essa substituição do crack por Cristo, efetivada a partir da cosmovisão evangélica e de seus elementos doutrinários?

Triunfo da religião O aumento do fenômeno religioso, como forma de objeção às soluções oferecidas pela ciência ao mal-estar da vida em sociedade, é mundial e não apenas brasileiro. Lacan anunciava, já em 1974, o “triunfo da religião”. Para ele, o fato de a ciência introduzir uma série de invenções perturbadoras (bomba atômica, fecundação in vitro, clonagem, eutanásia, internet) na vida de todos faria empuxo à necessidade de dar um sentido a todas essas reviravoltas introduzidas pela ciência, que chegam a angustiar até os próprios cientistas.

No importante artigo “Escravos de Deus: algumas considerações sobre toxicomania e religião evangélica” (2003), a psicanalista carioca Lígia Bittencourt parte da constatação da existência de inúmeras instituições evangélicas que se propõem ao tratamento de dependentes de drogas e busca analisar as especificidades dessa religião – especialmente na vertente pentecostal – que facilitariam seus fiéis a lidar com a questão do consumo excessivo de drogas.

Destaca inicialmente “a conversão”, que promove rupturas marcantes no comportamento de seus seguidores. Há um antes e um depois da conversão, que se configura como solução para uma grave crise pessoal.

O caminho da conversão implica o arrependimento e a fé. Querer mudar de vida é um ato de fé, a demonstração da confiança em Deus. O novo nascimento a partir da conversão implica a comunhão com o Espírito de Deus. Passa-se de uma posição de desconhecimento do outro para a posição de crença e total submissão a ele. Este nascer de novo faz com que todos tenham o mesmo pai, tornando-os “irmãos de fé”.

Nesse processo de identificação simbólica com Deus e sua verdade, acontece um exercício gradual de desintegração e morte do eu, em nome da identificação ao outro. “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim.” Todo esse processo contribui para reforçar a inscrição simbólica do sujeito.

O segundo aspecto diz respeito ao culto de cura ou libertação. Os evangélicos se distinguem pela ênfase religiosa em questões morais e com isso os fatos da moralidade e dos costumes são objeto de exame atento por parte da coletividade. Em geral, “desvios” e “tentações” sofridos por algum membro são motivo de intervenções, orações coletivas, provações e até medidas punitivas.

O aforismo “o mundo jaz no maligno” explica os valores deformados da vida secular e justifica o afastamento das coisas do mundo em favor da proximidade da igreja, lugar de culto e adoração. Por conta do pecado original, os crentes creem que o homem deu legalidade ao demônio, uma das facetas do real, para que fosse príncipe do mundo. Neste sentido, os valores do mundo não são os valores de Deus, mas sim do demônio. Por isso, a dependência de drogas e a própria droga são vistas como obra do maligno.

A noção do corpo na doutrina evangélica também merece realce. O corpo é o templo do Espírito Santo, e o sujeito apenas o inquilino daquilo que Deus lhe deu. Nesse sentido, o usuário de drogas (seja dependente ou não) é alguém que está cuidando mal do dono do corpo. Já a ausência de saúde é compreendida pelos pentecostais como fruto não apenas de problemas físicos, mas também como reflexo de questões morais e espirituais. Perspectiva interessante, pois supera o debate sobre se a toxicomania é uma doença orgânica, genética ou não, ao mesmo tempo em que apela para a responsabilidade do sujeito que se droga.

Desta forma, doença/pecado/falha moral se confundem, recebem a mesma atribuição de sentido e podem ser combatidos com fé em Deus. Nas palavras de um fiel “a relação com Deus dá tanto prazer, é tão boa que retira a necessidade da droga. Deus preenche qualquer vazio”.

Outro aspecto notável refere-se ao valor concedido ao poder transformador da palavra: ela cura, profetiza, exorciza.

Portanto, o toxicômano disposto a reformular sua existência encontra na religião evangélica uma espécie de outro mundo dotado de regras, crenças e valores próprios, que propiciarão a produção de uma nova subjetividade e de uma nova experiência de sociabilidade em torno de uma comunidade fraterna.

Na verdade, esse tipo de cura, de acordo com Bittencourt, não trata a dependência, mas oferece outra, uma vez que o centro da vida não é o homem, mas sim Deus, invenção substitutiva. A posição do sujeito enquanto servo do outro o inscreve numa espécie de tutela totalitária, pois não há espaço para a sua divisão (conflitos, incertezas, sonhos, pesadelos). O crente constrói sua vida sob os auspícios de um pai ideal, extremamente forte, onipotente, que determina o que pode e o que não pode, o que está certo e o que está errado, enfim o que é bom para viver.

Participação social Em 28 e 29 de junho será realizada a 1ªConferência Municipal de Políticas Públicas sobre Drogas de Belo Horizonte, oportunidade inédita de participação de diferentes segmentos sociais na formulação e no controle das políticas públicas sobre o tema. Todos residentes e trabalhadores, maiores de 16 anos, de cada uma das nove regionais administrativas da capital, poderão se inscrever e discutir nos grupos temáticos sobre tratamento, prevenção, redes locais e marcos regulatórios. As pré-conferências, em cada uma das regionais, estão sendo realizadas desde 27 de abril, estendendo-se até 8 de junho.

A organização da conferência parte de um pressuposto fundamental: a temática das drogas envolve diferentes áreas públicas e por isso sua discussão não pode estar restrita à segurança pública e à saúde, devendo considerar também o âmbito da educação, da cultura, do esporte, do trabalho, da habitação e da justiça.

No campo específico do tratamento, haverá a possibilidade de se demarcar a importância de se efetivar uma política pública consistente que contemple a constituição de uma rede de atenção psicossocial, com o aumento do número de Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (Capsad), a ampliação do número de consultórios de rua, de unidades de acolhimento e de leitos em hospitais gerais.

Outro ponto central de debate diz respeito à internação: sua prática, objetivos e modalidades, além das expectativas a ela imputadas. Os cidadãos e os profissionais de saúde não podem recuar diante desse tema, a fim de que não fique relegado às iniciativas de cunho religioso ou judicial, constituindo-se muitas vezes em práticas de confinamento. As internações involuntárias e compulsórias se justificam apenas em situações específicas de risco de morte e raramente implicam a adesão ao tratamento, chegando frequentemente a prejudicar possibilidades futuras. Por sua vez, quando efetivada com pertinência e consentimento do sujeito, a partir da construção de uma relação de confiança, a internação pode representar o início de mudança da relação privilegiada estabelecida com a substância psicoativa.

O fundamental é entender que esse sujeito não pode se refugiar em uma “doença”, como uma vítima, recusando sua capacidade de dizer, de dar resposta. Enfim, ele não pode deixar de se responsabilizar e de ser responsabilizado pelo modo como conduz sua vida.

*Oscar Cirino é psicanalista e integra a equipe do Centro Mineiro de Toxicomania.

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