Antologia de poemas de Libério Neves é lançada pela Editora UFMG

Ligado aos concretistas nos anos 1960, poeta integrou geração surgida em torno do Suplemento Literário

por Carlos Herculano Lopes 01/06/2013 00:13
Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
O poeta Libério Neves em Santa Tereza, bairro onde vive há mais de 40 anos e sobre o qual escreveu o livro da série BH, a cidade de cada um (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Já em contagem regressiva para comemorar os 80 anos bem vividos, que serão completados em abril do ano que vem, o poeta Libério Neves tem outro bom motivo para estar feliz: o melhor da sua poesia, lapidada com paciência e mãos de mestre há mais de meio século, acaba de ser reunida em um único volume, Papel passado, que a Editora da UFMG começa a distribuir nas livrarias de todo o país.

A antologia, que volta a dar a Libério papel de destaque na literatura brasileira, na qual estava injustamente esquecido, foi organizada pelo escritor e professor Fabrício Marques, para quem o poeta “criou uma estrutura de versos curtos, incendiados por uma música verbal, singular, que lhe permite ser sofisticado sem ser maneirista, e exuberante sem ser barroco”. Os poemas que integram a antologia foram retirados, entre outros, dos livros Pedra solidão,  O ermo, De circulação de sangue e Força de gravidade em terra de vegetação rasteiras. Ao todo, o escritor, ao longo da carreira, publicou 27 livros e tem três volumes prontos na gaveta. Libério se exercitou também na prosa e na literatura infantojuvenil.

Nascido em Buriti Alegre, interior de Goiás, mas vivendo em Belo Horizonte desde o início da década de 1950, Libério Neves disse que está muito contente com o resultado de Papel passado. “Como não poderia escolher meus próprios poemas, por considerá-los como meus filhos – e um pai não pode gostar de um filho mais do que do outro –, a seleção feita por Fabrício está ótima. Ele seguiu uma sugestão de Humberto Werneck, para que fosse extraída a nata da nata da minha poesia, e acho que ele conseguiu”, diz Libério.

Bom de prosa, e há muito já se considerando um “goianeiro”, mistura de goiano com mineiro, Libério Neves se lembra que quando começou a escrever seus primeiros poemas estava muito influenciado pelo concretismo, então em voga no Brasil, com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos no auge da produção literária . Essa influência pode ser sentida na sua obra, sobretudo em Pedra solidão, lançado em 1965.

“A partir deste livro, com muito trabalho, procurei ir mantendo uma linguagem mais despojada, que adquiri com o concretismo, porém já desconsiderando o rigor do espaço em branco e do efeito especial. E depois de O ermo, de 1968, não tive mais aquele compromisso amoroso do início da poesia concreta, e então pude dar meu salto para soprar minha linguagem do jeito que gosto”, diz o poeta.

Memórias Há mais de 30 anos sem fumar o tradicional cigarro de palha, não pelo fato de estar fazendo mal à saúde, mas porque lançou a si próprio o desafio de ver se conseguia ficar sem ele, Libério Neves contou também sobre a sua convivência no Suplemento Literário do Minas Gerais, que foi criado por Murilo Rubião em 1966. Já no primeiro número, lembra-se, não sem uma ponta de nostalgia, teve a alegria de ver publicado um poema seu. E mestre Rubião lhe disse: “ Você está representando a nova geração de escritores mineiros, que a partir de agora terão vez”.

Foi também no Suplemento, que funcionava numa pequena sala da Imprensa Oficial, na Avenida Augusto de Lima esquina com Rua Espírito Santo, que Libério ficou conhecendo poetas já consagrados, como Emílio Moura (também adepto do cigarro de palha), Bueno de Rivera, Laís Correa de Araújo e Affonso Ávila, e estreitou ainda mais a convivência com colegas de geração, como Adão Ventura, Henry Correa de Araújo, Márcio Sampaio, Sérgio Sant’Anna e vários outros.

Mas antes disso, no início de 1960, na companhia de Henry, Ubiraçu Carneiro da Cunha (pernambucano radicado em Minas), Elmo Abreu Rosa e outros escritores e intelectuais, ajudou a fundar a revista Vereda que, de acordo com ele, tinha como objetivo fazer uma poesia mais voltada para os ideais do concretismo.

Alguns anos depois, quando indagado sobre quais seriam os dois maiores poetas brasileiros, não vacilou em apontar três, nenhum deles adepto do concretismo: o mineiro Carlos Drummond de Andrade, “com sua poesia pomposa e elegante”; e os pernambucanos João Cabral de Melo Neto, “pelo rigor, parecido com suas origens nordestinas”, e Manuel Bandeira, “pela simplicidade aparentemente fácil”.

Sem parar nunca de escrever, “porque isso está no sangue”, Libério Neves, que não dispensa um bom vinho tinto seco, tomado na companhia da esposa, Marise, ou uma cervejinha “de leve”, junto com os amigos da Mercearia do Nivaldo, em Santa Tereza, onde vive há mais de quatro décadas, revela que atualmente está mais voltado para a administração da sua obra do que propriamente para a escrita. “Acredita que com meu poema ‘Pássaro em vertical’, de Pedra solidão, que foi publicado em vários livros didáticos, já ganhei mais direitos autorais do que com vários outros livros meus?”, pergunta desafiando a curiosidade o interlocutor.

Autor também de Santa Tereza, 20º volume da série BH – A cidade de cada um, Libério Neves, para demostrar ainda mais o seu amor pelo bairro, está programando, para breve uma manhã de autógrafos de Papel passado, lá mesmo em Santê, provavelmente no Bar do Bolão.

PAPEL PASSADO – ANTOLOGIA POÉTICA
• De Libério Neves
• Editora UFMG
• 130 páginas


Pássaro em vertical

Cantava o pássaro e voava
cantava para lá
voava para cá
voava o pássaro e cantava

de
               repente
                                     um
                                                  tiro
                                                               seco

 penas fofas
 leves plumas
 mole espuma

 e um risco
 surdo


 n
 o
 r
 t
 e
 -
 s
 u
 l.



Herança


1

Eu sou esse menino
e ainda me nino
colado no dilúvio
e olhando a nuvem

pisado no tempo
desta relva seca
pelo-me na têmpera
de ao sol a cera

meu olho vai-se
pelo além da fóssil
lenda dessa nuvem
uma quase chuva

2

sou esse menino
e ainda me animo
a erguer-me árvore
neste solo árido

haurido no sempre
ser a espera fosca
de fazer no vento
em folha o rosto

3

o tempo está de
me valer de espada
contra ser a nuvem
próxima dilúvio

e muito mais ainda
piso o céu unindo
terra que me pisa
e o mais liso azul

4

sou esse menino
e arvorar-me ave
de vazar por cima
o cimo desse azul.

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