E é exatamente sobre essa sensação de fim de civilização que versam os ensaios do livro póstumo que acaba de ser lançado no Brasil, Tempos fraturados – Cultura e sociedade no século XX. O volume reúne 22 ensaios, com análises que vão da política à cultura, entre trabalhos inéditos, resenhas e conferências, que cobrem o arco temporal que vai da belle époque ao capitalismo moderno, tendo como marco de seu esgotamento a sociedade de consumo. Hobsbawm nunca foi elitista e valorizava a cultura popular, mas tinha certo desencanto em perceber que o pensamento andava em baixa numa época que prezava mais um cantor de rock que um intelectual que tem coragem de chegar à arena pública e oferecer suas ideias ao debate.
Há um ar de testamento que perpassa os escritos do historiador, já que a maior parte dos textos foi escrita a partir dos anos 1990, pós-queda do Muro de Berlim e período de celebração da sociedade de mercado. Se o contexto político e econômico parecia se alimentar num consenso que apontava o fim da história, o historiador, ciente de seus instrumentos de análise, coloca em xeque a própria necessidade da cultura e do pensamento em tal cenário dissolvente. Por isso, os ensaios, mesmo produzidos em momentos e contextos específicos, parecem caminhar de um diagnóstico – a difícil situação da chamada cultura erudita – para a afirmação de uma crise – as incertezas do saber e a recuperação do mito.
Nesse caminho, Hobsbawm lança sua inteligência ao mundo para decifrar, entre outros aspectos, a cultura na virada do milênio; o papel dos judeus na vida intelectual; a obra de Karl Kraus; o sentido da música erudita numa sociedade de mercado na qual ela é insignificante em termos econômicos e de público; a perda de substância da arte burguesa no pós-Primeira Guerra; o enfraquecimento das ciências como elementos centrais da visão de mundo (o que carrega para a mesma sensação de inutilidade a educação e o projeto de universidade). Longe do historiador lamentar a democratização que chega junto com a participação das pessoas comuns na produção e fruição da cultura. O que ele aponta é a sensação de não saber bem o que fazer com ela num mundo no qual sua presença e papel é totalmente alterada e diminuída ao se tornar um produto entre outros.
Protesto Há alguns ensaios provocativos, como “Os intelectuais: papel, função e paradoxo”, escrito um ano antes de sua morte, em que Hobsbawm identifica o momento em que a figura do intelectual público deixa de ser significativa para a humanidade. Depois de percorrer a gênese desse personagem, dos antigos xamãs aos monges medievais, o pensador chega ao tempo da burguesia instruída, da qual faziam parte desde os intelectuais livres, ao modo de personagens da Bohème, até os literatos e jornalistas que deram o tom dos debates públicos que marcaram a primeira metade do século passado.
Neste contexto, fazia parte do universo moral do mundo ocidental a presença de pessoas que se agitavam em torno de ideias, projetos e causas, do caso Dreyfus à luta contra a colonização; da defesa de ideias estéticas de vanguarda à luta pelo desarmamento nuclear. Foi um tempo de gente como Sartre, Foucault, Raymond Aron e Derrida. Convocados a participar dos debates, os intelectuais eram presença pública irrecusável em todos os cenários de disputa.
Para Hobsbawm, o declínio dos grandes “intelectuais protestativos” deve-se tanto ao fim da Guerra Fria como à despolitização decorrente do período de crescimento econômico e triunfo da sociedade de consumo. Num mundo marcado pelo egoísmo individualista, o intelectual público desaparece frente ao salvacionismo pop de Bono Vox e companhia. “Vivemos uma nova era, ao menos até que o ruído universal da autoexpressão do Facebook e os ideais igualitários da internet produzam seu pleno efeito público.” Como se vê, Hobsbawm não vira as costas para a tecnologia, mas não sucumbe a seus efeitos meramente emocionais. É até possível que as redes sociais potencializem a revolta necessária, mas há inimigos poderosos a serem vencidos em seu próprio campo de entropia e isolamento.
O ensaio que fecha o livro, “O caubói americano: um mito internacional?”, é um exemplo do que pode a boa história aliada à análise política e sociológica. Hobsbawm tem como objeto um personagem tipicamente americano, o solitário cavaleiro que atravessa o país em busca de um modelo de vida justo. O historiador se pergunta sobre a universalidade do mito para concluir que ele se casa com um tipo de anarquismo muito próprio dos EUA, no qual o indivíduo suplanta o Estado e a lei em nome de valores morais inquestionáveis. O herói, para o americano, é sempre solitário (do caubói ao detetive particular), ao passo que os bandidos e ditadores precisam sempre do outro, na forma de obediência irrestrita. E conclui Hobsbawm que o caubói só seria viável como herói numa sociedade burguesa sem verdadeiras raízes pré-burguesas. Mas nem só de heróis se compõe a galeria de tipos do historiador. Ele conhece o mal e sabe que seus caminhos não são assim tão inescrutáveis quanto parece.
Numa de suas sínteses precisas e atordoantes, no artigo “A perspectiva da religião pública”, Hobsbawm ataca a um só tempo a religião e a ciência, no que as duas têm de pior: a capacidade de fazer do ódio o motor da ação humana. “Pois o paradoxo do fundamentalismo religioso redivivo é que ele surja num mundo em que a existência humana repousa em alicerces tecnocientíficos incompatíveis com ela, mas indispensáveis até mesmo para seus devotos.” E completa: “Os novos convertidos pentecostais não recuam diante do mundo do Google e do iPhone: florescem nele”. Razão e antirrazão numa mesma sentença. Vivemos mesmo tempos fraturados.
E nem os intelectuais parecem que estão lá, no coração do mundo, para dar uma mãozinha à humanidade.
Tempos fraturados – Cultura e sociedade no século XX
• De Eric Hobsbawm
• Editora Companhia das Letras
• 344 páginas, R$ 39,50