Um novo eixo

Além de partilhar interesses comerciais, o Brasil tem muito a aprender com as civilizações asiáticas, que desenvolveram secularmente formas harmônicas de convívio com a espiritualidade e a natureza

por 18/05/2013 00:13
Joe Klamar/AFP
Joe Klamar/AFP (foto: Joe Klamar/AFP)
Maurício Andrés Ribeiro

A Ásia tem um terço das terras continentais do planeta e três quintos de sua população de mais de 7 bilhões de pessoas. Há grandes diferenças climáticas, ambientais e culturais entre a Ásia central, o extremo Oriente, a Indochina, o Oriente Médio, a Sibéria, o subcontinente indiano, o Sudeste da Ásia.

A Ásia engloba civilizações que se autossustentaram por milênios, tais como a indiana, a chinesa, a japonesa, a persa, bem como outras mais recentes, como a islâmica. Cada uma delas tem características específicas, distintas cosmovisões e contribuições relevantes para a ciência, a filosofia, a espiritualidade e as artes. As civilizações asiáticas demonstraram capacidade de se sustentarem por milênios, seja se autoisolando do restante do mundo (China, Japão), seja por intensa interação, como no caso da civilização indiana, que sofreu migrações ao longo de toda a sua história.

Muitos países asiáticos atuais foram colonizados pelo Ocidente depois das grandes navegações e só vieram a tornarem-se independentes no século 20, após conflitos e tensões. A Segunda Guerra Mundial trouxe a bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki; a aplicação da não violência e dos princípios da Vedanta à luta política, por Gandhi levou à independência da Índia em 1947; ocorreram a revolução comunista de 1949 na China e as guerras da Coreia e do Vietnã. Atualmente ocorre a ascensão econômica da China e da Coreia; há conflitos no Oriente Médio, na Síria, em países árabes, no Iraque, no Irã, no Afeganistão, bem como tensões entre China e Japão, entre Índia e Paquistão.

Cada sociedade asiática desenvolveu valores e princípios próprios. Algumas foram expansionistas, como o Japão; para manter um padrão de qualidade interna razoável, precisaram recorrer à força militar ou econômica. Apropriam-se dos recursos comuns dos mares (baleias, golfinhos) e de outros países (florestas na Indonésia, por exemplo) para suprir suas demandas. Outras nunca foram expansionistas e desenvolveram formas de viver com o mínimo de pegada ecológica (Índia, por exemplo).

No presente, premidos pelo crescimento da população e das aspirações de consumo material, os países asiáticos veem esgotar-se alguns de seus recursos mais valiosos (água e terras agricultáveis na China e na Índia) e constroem infraestruturas para suprir suas demandas de energia (a energia nuclear no Japão está em crise depois do desastre de Fukushima); hidrelétricas na China e na Índia. Há tensão e estresse, pois alguns deles dependem de importar recursos naturais (alimentos, minérios, insumos para a produção) de países da América Latina e da África (a China, por exemplo, arrenda fazendas na África para produzir os alimentos que importa).

No século 21, o eixo econômico do planeta desloca-se do Atlântico para o Pacífico e o que ocorrer na Ásia terá repercussões no planeta como um todo.

Na Ásia se vivencia em muitos lugares a convivência entre a tradição e a modernidade. Adaptações sucessivas viabilizaram a sustentação daquelas antigas civilizações. No campo das tradições espirituais, na Ásia surgiram o confucionismo e o taoísmo; o ioga, o hinduísmo, o jainismo, o sikhismo, o budismo, o budismo tibetano, o zen-budismo e o xintoísmo, o islã, o judaísmo, o cristianismo, o zoroastrismo farsi monoteísta, o sufismo, os bahá’i. O cristianismo expandiu-se do Oriente Médio para a Europa e daí para as Américas, a África e a Oceania. Foi do Tibete que os lamas se espalharam pelo mundo, difundindo o budismo, a partir da invasão daquele país pela China.

As tradições espirituais originárias da Ásia expressam as quatro formas de relacionamento com Deus: o monoteísmo, o politeísmo, o panteísmo, o ateísmo. Em religiões politeístas ou panteístas os próprios deuses assumem fisionomia e aspectos animais: no hinduísmo, Ganesh, homem e elefante; Nandi, o boi sagrado de Shiva; Hanumam, o macaco; a serpente Subramanian, o pavão. A sacralização dos animais e a prática da não violência, ou ahimsa, refletem um tipo de relação homem- natureza, tradicional no Oriente. As tradições espirituais que creem na reencarnação, em geral, valorizam o ambiente natural – ambiente que, nas próximas encarnações, será palco da vida e que precisa, portanto, ser preservado, ainda que por autointeresse. Essa crença tem efeitos ambientais positivos e ajuda a preservar o ambiente onde serão vividas as vidas futuras. A crença na reencarnação e nos grandes ciclos, ou yugas, que se repetem, remete a uma macrovisão da vida.

Gaia e ecologia Religiões são fatos antropológicos que mobilizam intensa energia individual e social e que modelam comportamentos. Mas existem dúvidas sobre a sua capacidade de contribuírem positivamente no atual cenário de crise ecológica global. Assim, por exemplo, no seu livro A vingança de Gaia, James Lovelock alerta: “Os fundadores das grandes religiões do judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo e budismo viveram em épocas quando éramos bem menos numerosos e vivíamos de um modo que não sobrecarregava a Terra. Nossas religiões ainda não nos deram as regras e orientações para o nosso relacionamento com Gaia. O conceito humanista de desenvolvimento sustentável e o conceito cristão de direção são maculados por uma arrogância inconsciente”. Ele manifesta uma expectativa: “Meu desejo há muito tempo é que as religiões e os humanistas seculares se voltem para o conceito de Gaia e reconheçam que os direitos e necessidades humanos não são suficientes. Os religiosos poderiam aceitar a Terra como parte da criação de Deus, protegendo-a da profanação”.

Na mesma linha, Thomas Berry, autor de The great work, manifesta uma expectativa em relação às religiões: “A educação e a religião, especialmente, deveriam despertar nos jovens uma consciência do mundo no qual eles vivem, como ele funciona, como o humano se encaixa na comunidade mais ampla da vida, o papel que os humanos preenchem na grande história do universo, e a consequência histórica dos desenvolvimentos que moldaram nossa paisagem cultural e física”.

No passado, na Ásia se desenvolveram civilizações e tradições diversificadas, que têm um lastro de conhecimentos e de aprendizagem sobre a relação com a natureza e a terra. Esses conhecimentos podem ser valiosos no mundo do século 21 em busca de sustentabilidade. Do passado das civilizações asiáticas podem-se extrair inspirações e sabedoria utilizável na nova civilização planetária do século 21. A ecocivilização depende de mudança de padrões de consumo material para que se reduza a pressão sobre os recursos da natureza e a destruição ambiental. Para transformar esses padrões, é essencial a revisão de valores sobre os quais se assentam as noções básicas de felicidade e sucesso que impulsionam a ação individual e coletiva.

Em vários dos 49 países asiáticos há exemplos positivos e inspirações sobre o que fazer neste momento de crise ecológica. Da Índia vêm conceitos da cosmovisão da Vedanta e práticas ecologicamente amigáveis adotadas; do Japão, a sábia relação da população com a água, a floresta e o território; cosmovisões chinesas, como o taoísmo, têm forte consciência ecológica; o indicador de felicidade e bem-estar vem sendo desenvolvido no Butão; a tradição budista prevalente no Nepal tem forte componente ecológico. Há outras manifestações relevantes, a exemplo da tradição dos sufis na Pérsia, da tradição bahá’i com sua visão mundialista, e da tradição de ecologia radical jainista.

O Brasil e as civilizações asiáticas A civilização brasileira, por suas peculiaridades e identidade, é um mundo diferenciado na América Latina e pode ser considerada como uma das civilizações mundiais em florescimento. A civilização brasileira não tem relações conflituosas com nenhuma das demais. Cadinho cultural, com forte miscigenação, o Brasil tem um lugar no mundo que lhe dá a liberdade e o potencial de relacionar-se positiva e cooperativamente com as demais civilizações.

O Brasil já recebeu migrantes de vários países asiáticos, tais como a China, o Japão, a Coreia, a Síria, o Líbano. Há afinidades ecológicas e climáticas do Brasil com vários países tropicais da Ásia e essas semelhanças podem sugerir modos de relação com a natureza e de apropriação de seus recursos de modo ecologicamente amigável, como souberam fazer diversas das sociedades asiáticas.

No Brasil, existe um déficit no conhecimento, no investimento intelectual, científico, tecnológico, cultural e no intercâmbio com cada uma daquelas sociedades. Recentemente, ele vem sendo suprido por meio da intensificação das relações entre os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), os Basics (Brasil, África do Sul, Índia) e a cooperação Sul-Sul. Esses fóruns abrem novas perspectivas de intercâmbio e de cooperação. Além disso, para além das iniciativas formais e governamentais, cidadãos brasileiros tem se motivado voluntariamente para viverem, estudarem e visitarem os países asiáticos, o que é fundamental para que o intercâmbio necessário se realize.

Maurício Andrés é autor de Ecologizar e de Tesouros da Índia para a civilização sustentável.
www.ecologizar.com.br

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