Vazamento de esgoto em show mostra que Mineirão não está pronto

por João Paulo 11/05/2013 00:13

Sérgio Rodrigo Reis/EM/D.A Press
Mineirão verteu água malcheirosa em noite de Paul McCartney (foto: Sérgio Rodrigo Reis/EM/D.A Press)
 

O show de Paul McCartney em Belo Horizonte deixou um selo de felicidade. Várias gerações se encontraram para cantar junto aquelas canções. Há um fio, uma trama do inconsciente coletivo que une tanta gente diferente em torno das mesmas melodias singelas. As pessoas ficaram felizes.

A música dos Beatles não me toca além da sensibilidade imediata. Acho o rock mais interessante como fenômeno social do que estético. Tenho muito mais interesse no senso de revolta do que na conquista de mercados. Acho o samba e o baião mais bonitos.

Nada disso, é claro, interessa a ninguém. Mas o show de Paul McCartney em Belo Horizonte deixou um rastro preocupante que interessa a todo mundo: os problemas apresentados pelo novo Mineirão. Não se trata de dividir as pessoas em duas colunas, a dos pessimistas e a dos otimistas; nem de jogar sobre o fato o cacoete profissional de procurar problemas onde muitos veem motivo de celebração.

Há, evidentemente, uma questão de fato: o estádio não ficou pronto, as obras não têm qualidade, a capacidade de receber o público com eficiência está comprometida pela falta de competência dos responsáveis pela operação do serviço.

Entre os problemas detectados estão questões estruturais da cidade, como o trânsito e o transporte público deficiente, as quais não podem ser imputadas ao estádio ou aos organizadores do show. Mas há situações que exprimem a falta de comprometimento com o dono da arena, que pagou caro por sua reforma: o povo mineiro.

Vazamentos de esgoto, falta de sinalização, iluminação precária, acessibilidade inepta para deficientes, entre outros, são problemas inaceitáveis para um estádio que consumiu milhões de reais, foi entregue a uma operadora de acordo com contrato expresso de prestação de serviços e já teve tempo mais que suficiente para testes, inclusive shows e jogos de futebol pagos a preços exorbitantes. O público foi cobaia e pagou caro para isso.

Ao ouvir as explicações, o mais das vezes o que se acompanhou foi um jogo de empurra de um lado para outro, do governo para a concessionária, desta para a Secopa, daí até a Fifa, num caminho que procura desviar a atenção das responsabilidades para confundir o cidadão que frequenta a arena.

Como equipamento público, ainda que administrado por empresa privada, tudo que se passa no Mineirão emana da responsabilidade pública. Os concessionários estão lá para ganhar dinheiro, a prestação de serviços é só um meio. Quem precisa ditar as regras para que o proveito seja social é o governo. O que não tem sido feito, é só acompanhar a sequência de descaminhos.

Trocar os reveses menores apontados pela qualidade do show é atitude pouco cidadã e, no limite, egoísta e desmobilizadora. Ao artista todos os méritos cabíveis, aos administradores públicos e privados responsáveis pelos problemas, a responsabilização por seus erros.

O rock ensinou várias gerações a contestar, a sonhar com um mundo melhor, a não se submeter a autoridade vazia. Vem da música e da postura de alguns artistas a inspiração para a paz, mesmo enfrentando os senhores da guerra, e o desejo de amor acima dos ódios e das aparências. O Mineirão com esgoto vazando, escuro, com deficientes sem mobilidade e falta de informação é a mais antirrock das arenas.

Mesmo Woodstock, com sua lama, foi capaz de organizar o caos em nome da liberdade. No Mineirão, nem isso. Paul cantou suas canções, falou uai e outras palavras simpáticas para o público. Fez a parte dele. Os organizadores, numa corrente articulada, cobraram ingressos caros, ofereceram serviços com falhas e se mostraram ainda incapazes de gerir eficientemente o espaço. E ainda tentaram jogar a culpa no público.

Não se trata de empurrar para a frente, utilizando a Copa do Mundo como um álibi adiado do compromisso que deveria ser para hoje. Não é o estrangeiro que vai sofrer na Copa, é o cidadão mineiro, que arcou com a conta, que teve uma fruição atrapalhada do espetáculo para o qual não pagou preço de teste, mas de produto final.

O correto seria fechar a casa e só abri-la depois de efetivamente pronta. E não espalhar responsabilidade como cascalho, mas assumir erros e convocar competência técnica e política para resolvê-los. Quanto ao show e ao estádio, é preciso que habitem sempre a mesma sentença. O show foi bom, o esgoto péssimo. O desafio é ser afirmativo nos dois momentos.

Direita e esquerda

Outro fato que chamou a atenção esta semana foi a afirmação do presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, de que a imprensa brasileira é “de direita”. O uso do par direita e esquerda, no Brasil, nunca foi livre de ambiguidades. O curioso é que o magistrado, que curte uma posição de prestígio junto à imprensa, tenha tocado num ponto nevrálgico que deixou os jornalões se coçando.

A imprensa brasileira sempre gostou se ser classificada como liberal. É uma forma polida de aceitar posições conservadoras em política em nome de sua defesa do livre mercado na economia. Como direita rima com conservadorismo que tem as marcas de nosso passado recente de opressão e injustiças sociais, a autodenominação de liberal parece anistiar tudo em nome da defesa da liberdade.

A distinção entre esquerda e direita é complexa. Há questões de ordem ideológica, partidária, política, sociológica, cultural e econômica que sempre matizam os extremos. Os direitistas são prestos em dizer que há a extrema direita, da qual divergem; os esquerdistas apontam na extrema esquerda os radicalismos dos quais querem se afastar para manter a aceitação das classes médias. Assim, no limite, só os radicais são de fato esquerdistas e só os reacionários assumem que são de direita. Os outros preferem ser chamados de socialistas, se são de esquerda; ou liberais, se estão à direita.

Joaquim colocou o dedo na ferida, mesmo que sem querer. Quem pretende usar uma chave filosófica de fácil compreensão pode lançar mão de Norberto Bobbio, o sábio italiano que definiu esquerda e direita a partir da premência de dois valores, a liberdade e a igualdade.

Quem acredita que as pessoas são iguais e defendem ações públicas que favoreçam a igualdade (econômica, política e social) é de esquerda. Quem acha que a igualdade deve ficar no fim da estrada e que cabe incentivar sobretudo a liberdade, até para que as diferenças se anulem, é de direita. A esquerda precisa ir contra os instintos de divisão; a direita luta pela emergência da individualidade.

Voltando ao Mineirão, o futebol é de esquerda, a concessionária é de direita; Paul e o rock são de esquerda, administração pública de direita. De um lado está a igualdade (o futebol e a arte), de outro a liberdade em lucrar com esses eventos (a exploração econômica). Agora, o esgoto que vaza não é de direita nem de esquerda, é lambança mesmo.

MAIS SOBRE PENSAR