Lei de Cotas e a antipropaganda oficial

por Luciana Morosini 11/05/2013 00:13
Jefferson Rudy/CB/D.A Press
Estudantes da UnB se mobilizam pelas cotas na universidade (foto: Jefferson Rudy/CB/D.A Press)

Luciano Mendes de Faria Filho



O Ministério da Educação (MEC) colocou no ar, nas últimas semanas, uma peça publicitária para divulgação da Lei de Cotas. Essa lei faz parte de um conjunto de ações afirmativas para criar melhores condições de acesso de estudantes oriundos das escolas públicas às universidades e aos institutos federais.

Na propaganda, um jovem negro fala de sua origem trabalhadora, afirma que sempre estudou em escolas públicas e que, também por ser negro, pode se beneficiar da lei para estudar numa ótima universidade pública do país. Lembra, ainda, que está fazendo o que gosta e que sabe que sairá da universidade com uma ótima qualificação para o mercado de trabalho ou para a carreira acadêmica.

A peça publicitária tem vários méritos: mostra uma visão positiva da escola pública; traz para um público mais amplo a informação sobre essa importante política de ação afirmativa; ajuda a tornar o sonho de entrar numa boa universidade pública algo que pode ser compartilhado por milhões de jovens que, certamente, se identificarão com o estudante que nela aparece, entre outros.

No entanto, ao fechar a propaganda, ouve-se uma narradora dizendo: “O direito à educação é de todos. O mérito é sempre seu!”. Essa afirmação é desastrosa. Ela, na verdade, vai em sentido contrário daquilo que justifica e fundamenta a própria lei.

Em primeiro lugar, ao afirmar que “o mérito é todo seu”, a peça publicitária desconsidera que, quando um aluno pobre e negro chega à universidade, o mérito nunca é todo dele. Todas as pesquisas mostram que para que isso ocorra é necessário o apoio e a solidariedade de um conjunto muito grande de pessoas, que vai da família, passa pelos amigos e, não raramente, envolve fortemente os professores da escola básica. Praticamente todos os analistas e ativistas sociais que lidam com a educação sabem a importância dessa ampla rede para o sucesso escolar dos alunos pobres que frequentam a escola pública.

Mas não é apenas por afirmar o mérito individual do aluno que a peça presta um desserviço à causa mais ampla da qual a Lei de Cotas participa, que é a da construção de condições sociais menos desiguais de acesso aos bens públicos para o conjunto da população. Ao acentuar que “o mérito é sempre seu”, a propaganda também afirma que, se há milhões de jovens que não conseguem uma vaga na universidade pública, é porque eles… não têm mérito, é óbvio! Ou seja, novamente reduz uma questão social e coletiva a um problema de mérito individual.

Sabemos que o que justifica e fundamenta a Lei de Cotas é justamente o fato de que não basta o talento pessoal do aluno. Ou seja, ela é justificada pelo fato de que os alunos das escolas públicas, notadamente os negros, mesmo tendo grande talento, mesmo tendo muitos méritos, não conseguem vencer as adversidades sociais, econômicas, sociais e, mesmo, escolares que lhes obstruem o acesso às universidade públicas. Uma vez beneficiados pelas ações afirmativas, como a Lei de Cotas, por exemplo, para entrar nas universidades, tais alunos demonstram que têm mérito suficiente para alcançar rendimento igual ou melhor que os demais alunos, como demonstram as recentes pesquisas amplamente divulgadas sobre o assunto.

Política autoritária


Há que se perguntar, pois, como o MEC coloca no ar uma peça publicitária que é, na verdade, uma antipropaganda da causa que ela pretende apoiar. Minha hipótese é a de que há entre nossas elites, inclusive em parte daquela que hoje ocupa o ministério, uma cultura política autoritária, travestida de meritocrática, que desconsidera que em um país tão desigual e marcado por favorecimentos os mais diversos como o nosso o mérito pessoal é, muitas vezes, o que menos conta, sobretudo no que se refere à escolarização.

Por isso mesmo, o MEC parece ter incorporado a Lei de Cotas, mas não parece ter incorporado a profunda crítica à sociedade brasileira que dá substância e justifica essa mesma legislação. Sem levar em conta essa críticas, as políticas do MEC podem, todavia, transformar uma política de ação afirmativa, como a Lei de Cotas, em uma política paliativa como tantas outras que já vimos neste país.

. Luciano Mendes de Faria Filho é professor da UFMG e coordenador do Projeto Pensar a educação, pensar o Brasil – 1822/2022.

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