Intérprete da secularização

por 04/05/2013 00:13
Elton Vitoriano Ribeiro

Autor de importantes trabalhos em filosofia, Charles Taylor lançou, em 2007, uma obra monumental: Uma era secular (Editora Unisinos). A relevância cultural da reflexão apresentada por Taylor neste livro pode ser observada na releitura que faz da história da secularização, na diversidade de exemplos apresentados e na profundidade filosófica de suas análises sobre a religião e sua incidência prática na sociedade e na vida das pessoas.

Taylor começa seu trabalho com uma pergunta: “Por que era virtualmente impossível na sociedade ocidental não crer em Deus, por exemplo, em 1500, enquanto em 2000, para muitos de nós, esta escolha parece não apenas fácil, mas inevitável?”. Para responder a esta questão ele aponta três motivos que sustentavam a crença em Deus em 1500. Primeiro, o mundo natural era entendido como um cosmos ordenado que funcionava sob as ordens de Deus. A intervenção divina era reconhecida nos grandes eventos naturais, como tempestades, epidemias, mas também em grandes momentos de fertilidade e prosperidade. Em segundo lugar, Deus era necessário para a existência da própria sociedade. Não apenas no sentido óbvio de Criador. A própria vida das várias associações que formavam a sociedade estava intrinsecamente associada aos ritos e aos atos de devoção com os quais as pessoas e a sociedade expressavam as suas crenças. Finalmente, vivia-se num mundo encantado, povoado por espíritos e demônios. No mundo encantado dos nossos antepassados estavam presentes espíritos bons, que atuavam ajudando as pessoas, e espíritos maus, que as prejudicavam. No imaginário social, estes espíritos tinham o poder, por exemplo, de curar enfermidades, evitar desastres e ajudar na boa colheita. Esta mentalidade mágica era difusa também em objetos especiais que gozavam de uma força milagrosa. Numa sociedade assim era absurdo duvidar da existência de Deus.

O progressivo desaparecimento destas razões anteriores deve ser compreendido juntamente com outra razão importante: uma crescente confiança do ser humano em si próprio. Enquanto antes o indivíduo tinha uma personalidade porosa às influências, na modernidade o indivíduo torna-se cada vez mais confiante na capacidade de definir sua própria identidade. Tem-se uma nova concepção de indivíduo, confiante na própria capacidade de criar uma ordem moral imanente, sem referências a uma ordem externa. Todo este complexo conjunto de situações e acontecimentos produzirá um imaginário já não fundado em estruturas religiosas, mas no consenso entre as pessoas. Este imaginário produz não apenas uma nova ordem moral para a vida social, mas uma nova consciência do divino e da vida humana cotidiana. Surge um novo imaginário social secular, que já não tem o seu fundamento em Deus ou em alguma antiga tradição, mas, sim, na razão.

Não é difícil imaginar um quadro imanente como lugar de realização concreta deste novo imaginário social. A perda do sentido da ideia de Deus como necessária para a ordem humana social e a redução do projeto humano à realização pessoal do indivíduo configuram parte desta virada antropológica. Esta ordem impessoal onde Deus é visto como o arquiteto do universo, atuante apenas nas leis imutáveis da natureza, ajuda a criar este clima de desencantamento. Deus permanece como o criador, o maior benfeitor ao qual os seres humanos devem toda a gratidão. Porém, a vida cotidiana é cada vez mais marcada pelo papel crescente da economia e da racionalidade instrumental. Deus vai tornando-se uma realidade secundária. A ordem social é fruto do trabalho humano, que, juntamente com a realização moral, é resultado do esforço humano que se empenha responsavelmente numa realidade concreta e imanente. Todo este movimento não poderia deixar de produzir um novo horizonte de sentido. Este novo horizonte fica ao meio da estrada entre o ateísmo e o teísmo. É um espaço intermediário de uma espiritualidade indefinida e de uma nova atitude diante da moral que passa cada vez mais a aceitar os limites da condição humana descritos pela ciência.

RELIGIÃO MÍNIMA Neste complexo processo de transformação, a melhor forma de compreender a secularização não é a de investigar a passagem de uma cultura crente para uma cultura secular. A melhor forma é fazer atenção aos novos horizontes de compreensão da religião que vão surgindo. A tese de Taylor é a de que a secularização não significa simplesmente declínio da religião. A secularização comporta uma mudança na forma de as pessoas se confrontarem com a religião. A intuição de Taylor é que a cultura da secularização não gera necessariamente uma crise total, nem uma negação absoluta da religião. Para muitos, a sede da transcendência continua a ser presente como uma forma de religião mínima. Por isso, para Taylor a religião deve caracterizar-se pela fé numa realidade transcendente e na aspiração a uma transformação que ultrapasse a mera realização humana ordinária. Assim, é possível constatar o aparecimento de novas modalidades de vivência religiosa. Novas formas de oração e meditação. O crescimento de obras de caridade. Grupos de estudo e aprofundamento da fé. Peregrinações. Modalidades diversas de grupos de partilha e vida espiritual. É a sobrevivência na religiosidade, da transcendência, numa sociedade secularizada.

Na interpretação de Taylor, a fé religiosa deve constantemente confrontar-se com opções seculares e imanentes que tendem a produzir um horizonte fechado, marcado fortemente pelo individualismo moderno, pela razão instrumental, pela compreensão do tempo de forma linear e secularizada. Este horizonte tende a suprimir todo tipo de soluções seguras e definitivas. Cada pessoa, conforme sua atitude crítica, acolhe mais ou menos tal horizonte na própria vida. Ao acolher este horizonte, cada um enfrenta dilemas próprios de viver numa posição intermediária entre os extremos de uma religião transcendental e de um materialismo redutor da vida humana.

Finalmente, apesar das discussões sobre o declínio da prática religiosa, a sociedade contemporânea não pode ser entendida simplesmente como irreligiosa. À medida que antigas formas de religiosidade vão se enfraquecendo, novas formas vão surgindo e ganhando força. Estas novas formas são tentativas de viver a fé e a espiritualidade numa nova situação, em que a religião já não é algo partilhado por todos. A secularização não implica a ausência da religião ou o fim das exigências espirituais do ser humano. Implica o desenvolvimento de novos impulsos espirituais, muito mais fracionados do que no passado. Para Taylor, o perigo da secularização é o de construir um imaginário social pequeno e fechado, não levando em consideração as questões postas ao ser humano pela religião. Isso porque, conclui Taylor, o ser humano ainda leva dentro de si um desejo de plenitude que ultrapassa a realização humana no mundo histórico.

Elton Vitoriano Ribeiro é doutor em filosofia e professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte. Autor de Reconhecimento ético e virtudes (Editora Loyola).

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