Nascida em São Paulo, Lygia estudou direito no Largo do São Francisco, formou-se também em educação física e foi procuradora do Instituto da Previdência do Estado de São Paulo até se aposentar. Exerceu também militância na área do cinema, presidindo a Cinemateca Brasileira depois da morte de seu segundo marido, Paulo Emílio Salles Gomes. Pertence às acadamias Paulista e Brasileira de Letras. Escreveu livros de contos, romances e volumes inclassificáveis, misto de crônicas, ensaios e memórias. Recebeu muitos prêmios, entre eles o Camões (2005), considerado o mais importante da língua portuguesa. Foi amiga de escritores como Carlos Drummond de Andrade, Erico Veríssimo e José Saramago.
Os dados exteriores da biografia, ainda que notáveis, são apenas referências de dois outros universos habitados pela escritora, o político e o literário. Lygia viveu e produziu parte de sua obra sob a ditadura civil-militar e sempre se postou do lado da liberdade, com uma coragem que faz par com a elegância de seu modo de ser. Quando uma comissão de escritores foi a Brasília entregar ao ministro da Justiça o Manifesto dos Mil, uma declaração dura contra a censura, ela estava presente. Mas foi sobretudo em seus livros que os anos de chumbo ganharam veemente condenação, principalmente em seu romance mais conhecido, As meninas, de 1973.
O livro narra a história de três amigas que moram num pensionato de freiras e que, por caminhos diferentes, vivem a transição para a vida adulta num mundo marcado por transformações no campo da política e do comportamento. Lorena namora um homem casado; Lia milita na luta armada contra a ditadura militar; Ana Clara se afunda nas drogas e pensa em se entregar a um casamento de convenção. Os temas, que poderiam ganhar um tratamento épico e discursos ideológicos, libertários ou moralizantes, são tratados a partir das personagens, de sua vida íntima, da consciência de pertencer ao mundo em dissonância com os motivos mais pessoais. Lygia, com habilidade extrema, constrói seu universo de ambivalência a partir da alma de suas meninas. Talvez o por isso o livro seja tão forte e inteiro; e a sociedade, em seus descaminhos de toda ordem, ecoe de forma tão vívida no romance. O que importa para Lygia, sempre, são as pessoas. Não pode haver atitude mais política do que essa.
Delicada crueldade
Se o aspecto político surge sempre nos livros de Lygia, é bom frisar que eles nunca puxam a história. A grande realização da escritora é literária. É por meio de sua expressão, ao mesmo tempo clássica e experimental (ela utiliza recursos sofisticados com leveza, envolvendo mesmo o leitor mais desavisado) e tem sempre como propósito revelar o melhor e o pior do homem. Lygia observa os detalhes com astúcia, mas é também capaz de painéis sociais compreensivos, principalmente sobre a classe média urbana, especialmente acerca das mulheres.
A escritora iniciou a carreira como contista. Depois de relegar alguns escritos de juventude (na verdade cinco livros de histórias curtas), deu por começada a trajetória de suas obras com Antes do baile verde, uma espécie de antologia pessoal. As histórias curtas de Lygia são sempre surpreendentes, seja no tema ou na realização literária. Sob a aparente crônica da burguesia urbana paulista surgem momentos marcados pelo desencontro, pela solidão, pela incomunicabilidade, pelo mistério, pela capacidade de tocar nas franjas do inacreditável e do fantástico, pela profundidade psicológica e pela compreensão crítica da hipocrisia das relações sociais e familiares.
A escritora, com sua sempre destacada distinção e apuro formal, nunca corre o risco de ser acusada de escapista, como se a literatura fosse apenas um jogo para deixar o mundo problemático do lado de fora. Seu empenho é exatamente o oposto: incorporar a dimensão menos visível da realidade a partir do estudo de momentos decisivos que, sem seu olhar, passariam batidos na espuma dos dias. A obra de Lygia é um chamado permanente à atenção com as coisas e as pessoas, principalmente aquelas marcadas pelo efeito corrosivo do tempo e das relações humanas. O conto que dá nome ao livro, Antes do baile verde, é uma síntese desse procedimento. Duas moças, Lu e Tatisa, se divertem à janela durante a passagem de um rancho de carnaval enquanto dentro de casa o pai de Tatisa agoniza. É desses contrastes, muitas vezes cruéis, que é feita a vida. E as histórias de Lygia.
Nos romances, ela mantém o estilo, mas alarga a ambição, desenhando as personagens com mais vagar, criando novas vozes narrativas e compondo quadros em que a situação social se torna mais vívida. São sempre obras fortes, como As meninas, mas cada uma delas traz elementos originais de pesquisa literária e psicológica. Em Verão no aquário, por exemplo, há o conflito entre mãe e filha, entre tradição e renovação, entre o verão (como força irruptora) e o aquário (em sua redoma de proteção e isolamento). Em Ciranda de pedra, de 1954, período de forte marca do romance social, Lygia se aprofunda numa história de loucura, paixão e morte, que viceja escondido no subterrâneo de uma família de classe média. O livro ganhou de Carlos Drummond de Andrade uma avaliação definitiva: “Um livro perturbador, que nos prende e nos assusta, que nos faz sofrer ao mesmo tempo que nos oferece o remédio compensador da arte”.
Já senhora de seus instrumentos, a grande dama, à medida que o tempo passava, a partir dos anos 1980, foi desviando sua expressão para escritos de outra natureza: crônicas, pequenos ensaios e exercícios de memória. Em estilo que a aproxima do leitor como de um amigo, ela conta histórias, fala de momentos vividos, transfigura outros em ficções discretas. Põe em funcionamento as máquinas da imaginação e da lembrança. Dessa fatura fazem parte volumes como A disciplina do amor, Invenção e memória e Durante aquele estranho chá. São observações sábias sobre a realidade, mas que a reinventam; fragmentos que tornam lúcidas visões que surgem do mistério; a disciplina da mais indisciplinada das artes, o amor.
Lygia Fagundes Telles, aos 90 anos, tem ao seu lado uma obra que é patrimônio da melhor literatura brasileira do século 20. O leitor dispõe de uma boa edição de suas obras completas pela Companhia das Letras, com posfácios excelentes e depoimentos críticos bem selecionados. Talvez o maior encanto, quando se volta à leitura para Lygia Fagundes Telles, seja sentir o grande prazer que só a literatura é capaz de dar (e da qual tanta gente anda distante), uma sensação de humildade e curiosidade frente ao mundo e às pessoas, que vai sendo preenchida por uma espécie de sensação que não é nem inteligência nem emoção, mas compaixão.
Lygia nos faz contemporâneos de nós mesmos (porque sofrer e amar não têm tempo) e nos recoloca como integrantes da família humana, que não cessa de se espantar com seus mistérios. Elegância à beira do abismo. É o máximo que podemos querer da vida e da arte.