Viva a diferença

O anúncio do fim da canção cria uma dissonância com o movimentado cenário de novos artistas que exercem mesclas interessantes e abrem os ouvidos do país para o discurso que vem da margem

por 17/04/2013 14:25
Pedro Paulo Carneiro/Divulgação
Pedro Paulo Carneiro/Divulgação (foto: Pedro Paulo Carneiro/Divulgação)
Paulo Vilara


Com o golpe civil-militar em 1964, com todas as suas consequências nefastas – especialmente na cultura e na educação –, o projeto de identidade nacional mudou radicalmente. Não havia mais clima para um barquinho e um violão nem para a garota que passava cheia de graça a caminho do mar. Os compositores de canções da MPB responderam de imediato à escuridão institucionalizada, produzindo também músicas de protesto.

Taiguara, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Carlos Lyra, Chico Buarque, Edu Lobo, João do Vale, Gonzaguinha e outros se empenharam na luta contra a censura. Os tropicalistas e os compositores ligados ao Clube da Esquina, aqueles carnavalizando, esses ressaltando a dor, fizeram a sua parte, conforme se pode ver em trechos de canções que, recolhidas no tempo, sugerem as mudanças que ocorriam na passagem da repressão extremada, com prisões, torturas, assassinatos e “desaparecimentos”, para a cognominada “distensão lenta e gradual” da ditadura civil-militar, regime político de exceção que chegaria ao fim em janeiro de 1985: “E eu digo não ao não/ E eu digo: É!/ Proibido proibir/ É proibido proibir/ É proibido proibir/ É proibido proibir/ É proibido proibir...” (É proibido proibir, de Caetano Veloso, 1968); “Carabinas, sorriso onde estou/ um compromisso a sirene chamou/ duplicatas, meu sorriso de humor/ se perdeu na cidade onde estou” (Viva Zapátria, de Sirlan e Murilo Antunes, 1972); “Você tem que ir embora/ já começa a amanhecer/ parece outro dia/ negro” (Caso você queira saber, de Beto Guedes e Márcio Borges, 1975); “Caminhemos pela noite com a esperança/ caminhemos pela noite com a juventude” (Credo, de Milton Nascimento e Fernando Brant, 1977); “O meu canto chuta o traseiro do ditador” (Bicho homem, de Milton Nascimento e Fernando Brant, 1980).

Com o término da ditadura civil-militar a música de protesto perdeu por completo seu sentido de ser. A canção popular se renovaria nos anos 1980 com a Vanguarda Paulistana (Itamar Assunção, Arrigo Barnabé, os grupos Rumo, Premeditando o Breque e Língua de Trapo); com o surgimento de bandas nacionais de rock; com o rap dos Racionais e outros; e, nos anos 1990, com o movimento mangue beat, cujo maior representante, Chico Science, faleceu em 1997.

Essas várias vertentes musicais se juntaram às anteriormente existentes, abriram caminhos que influenciaram jovens compositores e provaram que todas as experimentações eram possíveis: a Vanguarda Paulistana utilizou samba, pop, reggae, rock, raízes africanas, erudito contemporâneo, humor e canto falado; as letras das bandas de rock aproximaram o universo jovem do idioma nacional; o rap foi mais uma força poético-musical em língua portuguesa, criticando a sociedade, denunciando injustiças e exprimindo a vida dos jovens da periferia – em sua maioria, negros; e o mangue beat fez a mistura de tradicionais expressões da cultura musical pernambucana (maracatu, coco, ciranda) com manifestações internacionais, como o rap, o rock e a música eletrônica. Mais uma vez, novidades saborosas no cardápio das músicas populares brasileiras.

Morte da canção Embora na segunda metade do século 20 a canção brasileira tenha atingido o auge do reconhecimento de seu valor sociocultural, sucesso inegável de público e de crítica no país e no exterior, sua morte foi anunciada em 2004 por José Ramos Tinhorão, pesquisador e estudioso da cultura nacional, e por Chico Buarque, um dos mais respeitados compositores populares do Brasil. Tinhorão, em entrevista ao caderno Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, em 29/8/2004, afirmou, categoricamente: “A canção acabou. (...) Acabou essa canção que nasce contemporânea do individualismo burguês, feita para você cantar e outras pessoas ouvirem se sentindo representadas na letra”. Quatro meses depois (26/12/2004), entrevistado em Paris para o caderno Ilustrada, do mesmo jornal, Chico Buarque diz: “Talvez tenha razão quem disse que a canção, como a conhecemos, é um fenômeno próprio do século passado, tal é a quantidade de releituras, de compilações, de relançamentos, de gente cantando clássicos – e isso no mundo inteiro. (...) A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. (...) Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção, tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou”.

Essa “morte” da canção provocou manifestação do Coletivo MPB – formado por compositores e pesquisadores da USP e da Unicamp –, que publicou na revista eletrônica Trópico o texto “A morte e a morte da canção”: “... a canção morreu duas vezes. A primeira morte foi política. A ditadura militar deixou bem claro em 1964 que o suave sonho bossa-novista tinha acabado e que a canção engajada do Centro Popular de Cultura, o CPC, não tinha mais lugar. (...) A segunda morte da canção aconteceu 40 anos depois e foi, aparentemente, de morte morrida. O legista a dar o laudo (...) foi ninguém menos que Chico Buarque. (...) Entre as duas mortes está justamente a consolidação da indústria cultural brasileira, como sistema integrado de indústria fonográfica, rádio, TV e jornal. Contudo, poesia cantada passou a não combinar mais com a face cada vez mais banal da indústria das mídias. O que se valorizou de certo momento em diante era a antítese do que havia até então: se veiculariam principalmente canções feitas para o esquecimento. O resultado foi devastador. (...) O que é preciso lembrar é que a consolidação da indústria cultural brasileira trouxe com ela uma segmentação do mercado que não pode ser evitada. Ainda mais, essa segmentação levou a uma segregação por parte dos setores dominantes da indústria daquela parcela da MPB comprometida com a conservação e renovação da tradição da canção. De modo que o problema hoje não é de atestado de óbito, mas de compreender o que significa essa segmentação e como é possível encontrar, na sua lógica, as brechas para intervir”.

Interessante notar que, embora tenha se passado menos de uma década desde a publicação do texto acima, não mais existe a nele citada grande indústria fonográfica, mas a análise prossegue válida, já que cada vez mais “canções são feitas para o esquecimento”, a segmentação de mercado está a cada dia mais aprofundada e a alegada segregação daqueles compositores que fizeram “aquelas canções todas” e que com o tempo aprimoraram “a qualidade da sua música”, é fato que faz pensar e merece ser debatido.

Margem e criação Se na segunda década do século 21 há algo a comemorar na música popular do Brasil, ele vem justamente dessa segmentação exacerbada, agora não apenas do “mercado”, mas principalmente de lugares à margem dele, distantes da indústria cultural e da mídia tradicional: há excelentes compositores e intérpretes se exercendo em circuitos alternativos, utilizando todos os canais de inserção, veiculação e difusão de suas obras na internet e nas redes sociais. Aos poucos ou mesmo repentinamente, conquistam ouvintes e espectadores, formam público, encontram aí “as brechas para intervir”.

Há de tudo nessa realidade cultural e, neste sentido, há espaço também para a canção “conforme a conhecemos” no século 20. Os septuagenários Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Edu Lobo, Marcos Vale, João Donato e outros continuam compondo, gravando e fazendo shows – com público, é bom que se afirme. Em Minas Gerais, especialmente, Milton Nascimento tem grande número de seguidores que o idolatram e constroem suas obras tendo nele – e nos demais compositores do Clube da Esquina – uma referência de qualidade musical, de inventividade e força na criação de melodias, harmonias e letras. Entre violonistas e guitarristas, Toninho Horta, respeitado em todo o mundo como um dos melhores instrumentistas, também é guia referencial de dezenas de músicos. Mas há indivíduos e grupos realizando outros tipos de composição e execução, alguns ligados ao chamado jazz mineiro, outros ao chorinho e ao samba, ao pop, ao rap, ao rock, e muitos se caracterizando por misturarem as diversas influências em sua música, sem rótulos fáceis de ser colados em suas caixas de instrumentos e malas de viagem.

Destaque-se a movimentação permanente que vem sendo promovida desde os anos 1980 nas periferias das grandes cidades brasileiras. Ali, os não bem nascidos, os ainda excluídos do banquete social estão se incluindo por conta própria, fazendo com que ouçam a sua voz, falando mais alto para si e para os outros.

Que assim continue. E que nesse imenso caldeirão musical que é o Brasil as identidades culturais, por múltiplas que sejam, consigam resistir à uniformização advinda da globalização e mantenham as diferenças locais, respeitando-se umas às outras com inteligência, sensibilidade e uma firme estratégia de sobrevivência que venha a ser útil e proveitosa para todos. Dessa maneira, creio que dá samba. E canção.

Paulo Vilara é autor dos livros Jazz! Interpretações – Pequenas histórias de fúria, dor e alegria (2011) e Palavras musicais – entrevistas com os compositores Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes e Chico Amaral (2006).

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