'A herança de Apolo' apresenta reflexão sensível sobre o território da poesia

O que um gênio afirma ser a razão da poesia outro igualmente gênio contradiz

por Paulo Bentancur 13/04/2013 06:00
Civilização Brasileira/Divulgação
Geraldo Holanda Cavalcanti humaniza o ofício do poeta, comparando sua tarefa à do romancista (foto: Civilização Brasileira/Divulgação )

O poema é uma busca radical, procura da essência que ultrapassa a forma mais direta com que a prosa se expressa. Este artefato não cabe num conceito porque há uma variedade de soluções verbais para que o poema se realize. O poeta luta – a maioria das vezes em vão – para impregnar seu poema do mais alto grau expressivo e/ou sonoro, atendendo assim a extrema exigência desse gênero inclassificável: a poesia. Eis uma síntese honesta do ensaio de fôlego A herança de Apolo, do poeta, tradutor, diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras, devotado à questão lírica há mais de meio século, Geraldo Holanda Cavalcanti, de 84 anos.

Dele disse Guimarães Rosa possuir a intensidade wagneriana. Geraldo lança agora certamente o mais ambicioso e bem realizado estudo acerca da arte poética no país. Algo equivalente ao insuperável O arco e a lira, do mexicano Octavio Paz. Livro que assombra não só pelas caudalosas páginas, mas pela análise rigorosa, juntando vasta cultura que ultrapassa o território do verso, mas vem aliar-se a ele, costurando a história da arte, a posição, em cada século, em cada ciclo estético, dos poetas fundamentais, numa generosa oferta de citações voltadas, todas elas, para definir o que Ferreira Gullar chamaria de “assombro” – a emoção poética.

O ensaísta percorre o acidentado, até mesmo abissal, território através do qual tantos legítimos poetas, de primeira grandeza, se descobrem e se perdem. Região que não se entrega a fáceis cartografias. Desta forma, o que um gênio afirma ser a razão de ser da poesia outro igualmente gênio contradiz. E ambos têm razão.

Dividido em três partes (“Poesia”, “poeta”, “poema”), A herança de Apolo abre mostrando que os inumeráveis esforços em definir a poesia chegaram mesmo a levar alguns iluminados a compará-la à experiência amorosa, febril e múltipla. Afinal, é impossível afirmar-se que o amor é isto ou aquilo, mas pode ser tudo isso somado e mais ainda, contaminado por uma força quase sem limites a não ser os que ela mesma propõe e segue.

Geraldo revela não só sua erudição como a amplitude do tema, mostrando que a natureza poética nunca deixou de ser um objetivo caro de ser alcançado. E, quando se chegava a uma descrição a princípio fiel do que seja a poesia, logo vinha outra, sem necessariamente derrubar a anterior, para somar nova visão do papel que ora o poeta protagoniza, ora protagoniza o poeta.

Palavras como “rio” e “tempo”, a compor movimento, servem de imagem sob medida para o gênero. No entanto, vocábulos como “cristalização” ou “silêncio” igualmente dizem dele com verdade.

Já o poeta, personagem endossado além do desejável (para uma interpretação convincente), recebe do poeta-crítico dimensão mais confiável. Geraldo o humaniza, pondo-o ao lado do romancista, por exemplo. E é nessa hora que nos damos conta de quanta lenda cresce como erva daninha em torno dessa figura dedicada com zelo no esforço apolíneo de buscar o supremo equilíbrio de sua arte folcloricamente desequilibrada.

Ares mitológicos Dividido, num extremo, pela enorme ambiguidade de gênero, própria da poesia, e, no outro extremo, pelo poema que lhe é possível, sempre a desafiá-lo em seus recursos, o poeta ganha ares mitológicos para atrair o que pode sua ação (o poema) penetrar mais fundo e impregnar-se da natureza, em regra impenetrável, da poesia. Quando consegue tal encontro, tal alquimia, seu poema inocula-se da potência lírica e ele poderá enfim cumprir legitimamente sua vocação de poeta.

Quanto ao poema, é só um artefato. Mas atenção! Por trás dele pode haver um poeta que logrou, mais que domínio de versificação, a passagem para o outro lado do abismo que separa a terra comum dos aspirantes à manifestação estético-verbal e o raro reino onde a poesia encarnou no poeta e, portanto, no poema.

Paulo Bentancur é escritor e crítico.


A herança de Apolo

• De Geraldo Holanda Cavalcanti
• Editora Civilização Brasileira, 462 páginas, R$ 59,90

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