Educação na cultura de cassino

Há algumas décadas se falava em sociedade do conhecimento, hoje se defende que devemos ser formados para esquecer o que aprendemos ontem sob o risco da obsolescência

por João Paulo 13/04/2013 06:00
Eloy Alonso/Reuters
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman decifrou a modernidade líquida: um cenário nada promissor (foto: Eloy Alonso/Reuters)
As pessoas não gostam de pensar. Dá trabalho. Sobretudo quando a exigência de reflexão parece jogar contra tudo que se convencionou considerar como valor: o sucesso, o dinheiro e o poder. Por isso os pensadores estão em baixa, o estudo deixou de ser um bem, a ideia de preparação apenas um atraso à chegada ao mundo das mercadorias e do prazer imediato e com preço na etiqueta.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman vem, nas últimas décadas, alertando para esse tipo de cenário, a modernidade líquida (que substituiu a modernidade sólida), e para o tipo de homem funcional nesse contexto. Sua extensa obra é um alerta que, embora fundamentado na melhor ciência social, parte sempre do cotidiano e de experiências presentes na vida de todos: o medo que paralisa e nos entope de ansiedade, a fragilidade dos laços amorosos, transformação do homem em mercadoria pela sanha do consumo, o desprestígio da política, a aceitação da injustiça social como um mero dano colateral da globalização.

Com 30 livros já lançados no Brasil, Bauman vive na Inglaterra desde 1971 e, a cada estudo, parece operar um poderoso do-in em nossas fragilidades. Com a capacidade de ir ao ponto certo, sua massagem intelectual faz circular energias necessárias para quem ainda se dispõe não apenas a compreender nossos descaminhos, como a atuar para modificar seu rumo. O que Bauman mostra não é um panorama de depressão e tristeza. Ele sabe que a modernidade líquida, ainda que ansiogênica em sua natureza, se alimenta da cota de prazer que promete em termos de consumo e felicidade imediata. A modernidade líquida não é um descaminho, mas um projeto.

Por isso, o mais recente livro do sociólogo, Sobre educação e juventude (Editora Zahar), é tão interessante. Dado o diagnóstico, Bauman se preocupa em mostrar o projeto de formação educacional que está por trás de um mundo sem futuro. Mesmo a mais liberal das ideologias sempre via na educação um momento necessário para renovação das elites culturais e políticas. Estava na educação o bastão que se transmitia de uma geração a outra, em termos de valores e conhecimentos fundamentais. Na sociedade líquida, na cultura de cassino, na expressão de George Steiner, esquecer é melhor que lembrar. O consumo é ponto de partida e de chegada.

Não é um acaso que os jovens, hoje, se sintam desnorteados e raivosos quando percebem que a promessa de um emprego se frustra numa sociedade que não valoriza o conhecimento (há algumas décadas se falava orgulhosamente em sociedade do conhecimento, hoje se defende que devemos ser formados para esquecer o que aprendemos ontem sob o risco da obsolescência). Há vários sinais desse desprestígio: a corrida para os concursos (a estabilidade acima do desafio de criar e mudar o mundo), o excesso de relações virtuais, o abuso de drogas, o comportamento violento, o consumismo. Não é um acaso que os mitos de sucesso de hoje apelem tanto para pessoas que deixaram a escola de lado, como Steve Jobs, Jack Dorsey e David Karp, todos da área de informática: no mundo do sucesso imediato, a educação é um atraso de vida.

Em Sobre educação e juventude, o sociólogo, em diálogo com o italiano Ricardo Mazzeo, enfrenta os desafios da educação na sociedade contemporânea. Não se trata apenas de uma defesa genérica que costuma ser traduzida em termos de busca de mais recursos, ampliação da jornada, valorização dos professores e primazia do conhecimento, como se todos os males se devessem a um déficit no setor. Na verdade, o projeto de educação para o consumo é funcional e vitorioso, não sinal de uma derrota. Mudar a educação é um passo importante para a transformação da sociedade. Não se pode querer menos que isso.

Bauman começa lembrando a contribuição do antropólogo Gregory Bateson e sua distinção entre níveis de educação. No primeiro patamar, o mais baixo, há apenas a transferência de informação a ser memorizada. No segundo, se busca a formação de uma estrutura cognitiva que permita, no futuro, que outras informações possam ser absorvidas e incorporadas, criando um patrimônio de saber e habilidades. O terceiro nível se refere à capacidade de desfazer a estrutura anterior, sem deixar no lugar um elemento substituto. O que pode, em momentos muito especiais, ser a abertura para novo paradigmas (é importante lembrar que quebrar paradigmas é algo mais profundo que mudar de ideia), na maioria das vezes, tem efeito paralisador sobre o conhecimento.

Na educação contemporânea, o primeiro nível deixou de ser importante, já que a mera informação foi transferida para a memória das máquinas, e o que era potencialmente um câncer se tornou um valor. Hoje, em alguns contextos, esquecer é mais importante que manter viva a memória. A tradução dessa operação, por exemplo, no mundo do trabalho, se dá na desvalorização de carreiras longas, de aprendizagens cumulativas, de patrimônios de experiência plasmados no tempo. Em muitas áreas de prestígio, vale mais ter tido muitos empregos dispersos e até conflitantes do que uma trajetória coerente de construção de um saber e de um saber fazer. A liquidez moderna exige desprendimento, volatilidade, mudança. Como os personagens de Lewis Carrol em Alice no País das Maravilhas, é preciso ir rápido para ficar no mesmo lugar e correr duas vezes mais rápido para sair de onde está.

Alimentar o ódio A juventude atual vive um cenário de decréscimo de expectativas como não se via há muito tempo. Ter um diploma não é mais garantia de nada. Na geração de seus pais, não havia esforço mais amoroso que investir na educação do filho. Hoje, sobretudo na Europa, a ausência de perspectivas dos jovens, que se veem forçados a aceitar ocupações abaixo de sua formação, domina as consciências infelizes. O resultado, ao lado de uma saudável revolta, contudo, muitas vezes se transforma em ódio geracional (como se a previdência fosse culpada de tudo) ou mixofobia, traduzida em comportamentos racistas e xenófobos, como se os estrangeiros fossem responsáveis pelo desequilíbrio de um capitalismo que não vê fronteiras na hora de expandir e quer criar barreiras no momento da distribuição.

Os alertas e propostas de Zygmunt Bauman não se voltam para a nostalgia de um passado de ouro. Há novos desafios no mundo. O que suas reflexões sobre a educação parecem trazer são alguns pressupostos que não podem ser deixados de lado quando se pensa, hoje, em soluções amplas para temas sociais e políticos.

O diagnóstico parece conter em si a terapia: somos herdeiros de uma era de diferenças, as questões globais só são pensáveis no terreno dos temas locais, a assimilação à cultura dominante não é mais um destino, o capitalismo gera mais problemas do que é capaz de resolver com seus próprios instrumentos, a tecnologia não vai dar conta de nosso impasse ecológico, a conquista dos ideais modernos foi interrompida, o mercado de consumo não vai obturar nossas faltas enquanto indivíduos e cidadãos.

Sobre educação e juventude é um livro para todos, já que, mesmo não sendo mais jovens, precisamos voltar à humilde disposição para aprender. Somos responsáveis pela mixórdia em que nos metemos. Mas é sempre mais cômodo colocar a culpa nos outros e apostar numa genérica saída “pela educação”. Qual educação? Como afirmou Paulo Freire, “o educador precisa ser educado”. O que era um acicate contra o conservadorismo talvez mereça hoje ser tomado como uma tarefa saneadora de nossas arrogâncias e certezas combalidas.

Sobre Thatcher

A morte da ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher gerou reações apaixonadas dos dois lados do espectro político. O bom senso parece apontar para a necessidade de equacionar erros e acertos na trajetória da Dama de Ferro. Foi o que se viu na imprensa. Nada mais equivocado. Não se é dama e de ferro ao mesmo tempo. Em história e política é preciso que haja razão, não convencionalismo amenizador ou oxímoros satisfeitos. Em 11 anos de poder (prazo que em outras latitudes é considerado ditadura, mesmo quando resultado das urnas populares diretas, o que não se dá no sistema inglês), a favor de Thatcher só ficou a primazia do ultraliberalismo e do Estado mínimo, um saldo francamente ideológico e contestável na prática.

Musa da década perdida, ela ajudou a destruir o aparato de proteção do Estado de bem-estar social em seu país e abalar em cascata outras experiências em curso (contribuindo para pôr em suspeição a mais importante e efetiva construção política e de solidariedade social do século 20, que, é bom que se diga, passa longe da esquerda), exacerbou a crise econômica, tratou as questões sociais com força policial, foi incapaz do diálogo com os trabalhadores e gerou desemprego em escala só vista em momentos de crise mundial e do pós-guerra.

Se há um mérito em sua figura foi se colocar como referência a ser combatida por movimentos libertários de toda natureza, dos humanísticos aos culturais, como o punk, por exemplo. Margaret Thatcher, sempre segura e coerente com suas ideias, é preciso reconhecer, merece entrar para a história em seus próprios termos. Pelo que fez ao mundo.

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