Obra recupera a importância das obras do pintor Vicente do Rego Monteiro

Livro com texto de Jacob Klintowitz destaca as pinturas realizadas nos anos 1960

por Carlos Perktold 13/04/2013 06:00
Há poucos meses, a Fundação Clóvis Salgado trouxe a Belo Horizonte um jovem e virtuoso violinista que, junto com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, mesmerizou a plateia com a execução de um concerto do tcheco Antonin Dvorák. O comentário no foyer do Palácio das Artes durante o intervalo era unânime: o rapaz nasceu artista. Que ele é um artista não há dúvidas, mas que nasceu assim não é verdade. Toda pessoa talentosa tem potencial para o que veio ao mundo, mas apenas aquela que se sobressai no que faz sabe o quanto estudou, trabalhou, se dedicou ao objeto de seu interesse e a garra que foi necessária para chegar aonde ela chegou. Sem interesse próprio, determinação, incentivo, apoio familiar e professores dedicados, o concertista não teria sido quem é. Neste momento, há milhares de Chopins, Beethovens, Drummonds, Chaplins ou Vargas Llosas existentes pelas favelas do Brasil afora, todos sem oportunidades para o que nasceram: potenciais artistas talentosos que morreram e morrem desconhecidos pela falta daquilo que o violinista teve.

Esse parágrafo é para fazer uma analogia da biografia do músico com o pintor e artista brasileiro-pernambucano-universal Vicente do Rego Monteiro, que, também jovem cheio de talento, estudioso, incentivado e de antiga família pernambucana, aos 14 anos, em 1913, já expunha no Salão dos Independentes, em Paris, cidade que ele escolheu para viver a maior parte de sua vida. É possível que ele tenha sido o mais jovem dos artistas presentes durante anos naquele salão, pois expôs ali seguidas vezes. Paris foi sua morada durante os anos dourados depois do final da Primeira Guerra Mundial, convivendo com outros pintores, poetas, escritores, artistas em geral, naqueles anos de 1920, 1930 e início da década de 1940. Paradoxalmente para ele e seus admiradores brasileiros, sua ausência tão prolongada o tornou um pintor pouco comentado por duas gerações brasileiras, deixando um vazio pessoal e injusto no mercado de arte brasileiro, se comparado com Portinari, Di Cavalcanti ou Guignard, seus contemporâneos.

P. M. Bardi, em 1957, ao admirar um quadro assinado M. Monteiro imaginou estar defronte de obra de pintor português. Surpreendeu-se ao sabê-lo brasileiro e desconhecido por ele. Pelo relato de seu marchand Carlos Ranulpho, que expôs seus trabalhos em Recife em 1969, Vicente ficou muitos anos viajando entre Paris e Recife e não acreditava no mercado de arte brasileiro e duvidava da aceitação e sucesso de venda de seus trabalhos. “O que o senhor quer comigo?”, perguntou o pintor agressivamente ao então desconhecido Ranulpho quando este o procurou pela primeira vez para propor uma exposição. A aceitação para expor e as vendas da exposição foram excelentes e, desde então, tornaram-se amigos do “lado esquerdo do peito”.

Carlos Ranulpho conviveu com Vicente do Rego Monteiro entre o início de 1968, quando o conheceu pessoalmente, até 5 de junho de 1970, quando Vicente abriria sua retrospectiva no então prestigiado “Resumo JB”, do Jornal do Brasil, e faleceu. Foram poucos meses, mas a amizade entre artista e marchand permanece até hoje, 43 anos depois de sua morte. Prova disso é o livro Vicente do Rego Monteiro – Olhar sobre a década de 1960, escrito por Jacob Klintowitz e editado pelo velho amigo. O texto é primoroso e o leitor terá uma visão clara da qualidade de sua pintura dessa década, não somente pelas palavras do autor, mas pela quantidade de imagens distribuídas em páginas bem diagramadas e que retratam a maturidade do artista, criador de beleza ímpar em qualquer tela. Espera-se que a edição do livro desperte o interesse dos colecionadores da nova geração, desconhecedores do artista desaparecido em 1970.

O colecionador iniciante não precisa se preocupar se algum quadro dele tem qualidade diferente de outros. Tendo tido vida relativamente curta, como teve seus colegas de paleta Guignard, Ismael Nery e Portinari, Rego Monteiro não deixou uma única peça na qual a presença da fragilidade da velhice produzisse a insegurança do traço e fizesse tremer a mão do pintor, produzindo legado que pudesse ser comparada à sua belíssima produção da juventude. Em qualquer década de sua vida, tudo dele é bom.

Em 1922, Rego Monteiro expôs na célebre Semana de Arte Moderna em São Paulo oito telas a óleo, uma quantidade expressiva, nos quais apresentava pintura modernista e desconhecida pelo público paulistano. Vicente tinha então 23 anos e até completar 71, quando faleceu de ataque cardíaco dentro de um táxi indo para o aeroporto de Guararapes, em Recife, em direção ao Rio de Janeiro, fez uma trajetória na qual deixou acervo de centenas de obras-primas espalhadas em museus europeus, sobretudo, em cidades como Paris e Grenoble, na França, Brasil e em coleções particulares.

Cromatismo estonteante O leitor não encontrará reproduzidas no livro imagens com as quais entenderia o caminho pictórico de Rego Monteiro, o que permitiria compreender como ele chegou à originalidade primorosa de sua pintura, como é comum e necessário em edições nas quais há preocupação biográfica. Não são essas as pretensões desse livro. Ele traz percurso apenas da década de 1960, quando o artista era maduro, consagrado na Europa mais que no Brasil e não precisava provar nada para ninguém. A qualidade das fotografias e suas reproduções gráficas farão o leitor perceber que o artista construiu pinturas como se fossem “esculturas em cerâmica” em espaço bidimensional, como esclarece Klintowitz. Seu cromatismo é estonteante e a disposição das formas e cores criadas por ele fazem cada figura pictórica parecer uma escultura, pronta para ser fixada na parede.

Rego Monteiro não era pintor de paisagens ou de marinhas. Ele executou na década de 1940 alguns quadros de flores, livros abertos, incluiu violinos e violões e diversos objetos espalhados em composições equilibradas nas quais até cigarros podem ser vistos. Sua vida artística era dentro dos diversos ateliês que teve ao longo de sua carreira em Paris, Recife e Rio de Janeiro. Desde sempre, apresentou preocupação com a simetria, da qual se tornou o apóstolo absoluto. Simetria é a invenção, a linguagem, a geometria de Deus, existente em todos os seres vivos, fauna e flora, em especial em certas árvores e, com certeza, na avassaladora maioria das suas folhas, além do ser humano. A mesma simetria existente no barroco. Por isso, recomenda-se que o livro seja lido e folheado ao som de um concerto de Bach. Se estiver disponível, Cânon de Pachelbel é o mais que perfeito.

Rego Monteiro era um humanista e o seu humanismo está presente na constância das figuras bíblicas ao longo de sua obra, se desdobrando em outras figuras como operários transportando canas e aguardentes ou esportistas como Pelé e seu gol de bicicleta, dois boxeadores, registros científicos como a presença de dois astronautas na primeira viagem à Lua e mulheres sensuais. A limpeza de seus trabalhos encanta pela excelência de cores harmoniosas, despreocupado com aplicação das cores complementares, e era virtuoso também em peças monocromáticas. Ele construiu um mundo de cores próprias, como deve ter todo pintor, e formas reconhecidas de longe ou em um olhar de soslaio sobre qualquer parede.

A originalidade de Vicente está também no desafio de desenhar com as tintas construções enigmáticas e intrigantes como o Caleidoscópio, reprodução nº 87 do livro e pertencente a coleção particular do Rio de Janeiro. Perceber um caleidoscópio é fascinante, tão grandes são suas múltiplas e rápidas transformações; imagine o leitor pintá-lo. Pintar uma marinha ou uma cena urbana ou ainda uma paisagem campestre, explica Jacob, é mais simples que criar os quadros de grandes dimensões do mestre pernambucano, assertiva com a qual qualquer artista concorda. Nada contra pintar paisagens e marinhas. Pelo contrário. Quando executadas por artistas talentosos e amantes do mar são sempre de beleza ímpar, haja vista aquelas de Pancetti ou do nosso saudoso Herculano Campos e do fluminense Aluisio do Valle.

O livro contém ainda depoimentos do editor, de amigos e da sua mulher brasileira. Esta era viúva aos 23 anos de idade, com três filhos menores, quando conheceu Vicente. Com ele, ela teve mais três. Seu comovente depoimento, datado de 1995, está registrado no livro com a simplicidade e a ingenuidade de uma mulher generosa que conviveu com um gênio e não sabia. Soube depois, enquanto ele, consciente da grandeza de suas obras, foi acumulando pinturas, que deixou reservadas como garantia e herança para ela e seus filhos, se algum dia ele faltasse.

As amizades costumam surpreender amigos pelo bem ou pelo mal. A de Ranulpo e Rego Monteiro foi a certeza de que ela começou com uma pergunta agressiva e foi se suavizando até chegar a quarenta e três anos após o desaparecimento do pintor. Se fosse vivo, Ranulpho o surpreenderia com a edição de livro que contribui para sua imortalidade.


Carlos Perktold é psicanalista e crítico de arte.

Vicente do Rego Monteiro – um olhar sobre a década de 60
• De Jacob Klintowitz
• Edições Ranulpho
• Galeria de Arte, 232 páginas, R$ 100

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