Livro de contos de Fábio Lucas, O zelador do céu e seus comparsas mistura fantasia e realidade

Narrativas são marcadas pelo maravilhoso e pelo humor

por Rui Mourão 30/03/2013 11:53
As pessoas que convivem de perto com o autor de O zelador do céu e seus comparsas conhecem a maneira muito peculiar do seu envolvimento emocional com Esmeraldas, a terra em que nasceu. Entre os dois, algo de rumoroso acontece. Em qualquer parte, diante de qualquer público, entre sorrisos funcionando como recurso de anteparo, a fim de não assustar muito quem o ouve, o escritor se multiplica em portentosos elogios à terra que, embora não seja de conhecimento geral, possui glórias bem mais robustas do que a de ter sido local de nascimento de Fábio Lucas, que o país inteiro reconhece como um dos seus intelectuais mais merecedores de encômios.

Como ele divulga e hoje vai se tornando de conhecimento geral dos povos, a antiga Santa Quitéria é uma capital regional de grande vulto com seu impressionante complexo de cidades-satélites, numa das quais se acha instalada a plataforma de lançamentos de foguetes interplanetários, saída mais disputada pelos que desejam empreender viagem à Lua, em decorrência das condições de rapidez e eficiência que oferece. O urbanismo do todo municipal possui tanta virtude que desperta a curiosidade de técnicos do mundo inteiro, interessados em estudá-lo. Os edifícios são de alturas celestiais. Os gestores públicos, que dão solução com incrível rapidez aos problemas mais intrincados, causam inveja país afora. O vigário local só não foi eleito papa porque a Igreja ainda não aprovou a possibilidade de um simples pároco concorrer em igualdade de condições com os cardeais.

Limito-me a oferecer essa ligeira amostra dos recursos da propaganda diuturna exercida pelo competente marqueteiro de Minas Gerais, para que se conheça a verdadeira essência desse proselitismo exacerbado e veja como ele pôde ser transferido para o plano da criação literária. No conto “A Praça dos Sonhos”, inserido no livro ora lançado, o narrador implícito, que não se define mas não deixa nenhuma dúvida, é o empolgado filho de Esmeraldas, ao escutar, pela voz dos filhos, que em torno dele se reúnem, a senha habitual: “Quando você era pequeno, que mais?”, se transfere com o grupo imaginariamente para o banco da praça central de Transvalina, a cidade milagrosa onde “todos os sonhos viram realidade”, e começa a dar informações sobre um tempo ideal localizado no passado, alimento espiritual servido por um pai generoso: “Para a geladeira funcionar, a gente devia dar corda. Das torneiras – eram três – jorravam água, leite e guaraná”. “Os muros da cidade eram de queijo (os branco) ou de rapadura (os marrons).” “Os meninos poderiam fazer o que bem quisessem, inclusive voar, pois a Prefeitura emprestava asas para todos.” Na cidade-satélite de Andirobas, “havia discos-voadores diretamente para a Lua. A única coisa a fazer era entrar e apertar o cinto de segurança”.

Diante de tais informações, os ouvintes se veem transferidos ao plano da idealidade. Pressentindo os riscos daí advindos, o narrador logo trata de fazer uma advertência: “Quando as coisas não davam certo, viravam pesadelo. Como da vez quando Francisco começou a afogar no córrego ou Laura queimou a mão no forno”. Essa chamada à ordem tinha o mesmo efeito do irônico sorriso permanente de Fábio ao fazer suas referências um pouco exageradas sobre as virtudes da sua terra. No plano da literatura o texto se corrige, fugindo da pura fantasia, o que nos permite concluir, o conhecido proselitismo exibicionista do autor com relação a Esmeraldas se viu transformado na expressão do maravilhoso tendendo para o extravagante, sempre impregnado de humor.

Fiscal do universo

Em “O zelador do céu”, narrativa que abre a coletânea, mais entendimento podemos ter desse processo de apropriação da realidade pela literatura. O personagem Jacinto Cruz é proprietário de um observatório astronômico com o qual exerce a função de fiscal controlador do universo. Cá no chão transita outra figura, o Profeta Ramiro, indivíduo malcheiroso, avesso a banhos, agourento profeta de catástrofes, verdadeiramente o lado podre da comunidade. O equilíbrio que o texto propõe ao criar entidades tão díspares é da mesma natureza daquele recuo que objetiva voltar a pisar no chão, para controle dos excessos destemperados do filósofo de Transvalina, que se desmanda em desvario, desejando controlar o universo inteiro, o espaço estelar e tudo o mais que acontece até nas entranhas do planeta.

Na estória seguinte, “Monólogos do carpinteiro”, ao registar um acidente ocorrido no mesmo observatório, mais luz é lançada sobre a questão que estamos examinando. A escada que permite a subida para o telhado se rompe ao peso do astrônomo, num degrau apodrecido. O homem vai ao chão, quebra a espinha, fratura o crânio e termina por morrer. O carpinteiro Ernesto, encarregado da substituição da peça danificada, chega até o observatório e resolve mudar a direção da luneta, para focar no microcosmo de Transvalina, e encontra panorama mais convincente e de maior validade do que o que inspirava as especulações filosóficas do anterior proprietário do logradouro.

Fica mais clara a observação que acima chegamos a fazer. Não é apenas a repelência do profeta que constitui contraponto às sondagens de infinita dimensão idealista do guardião do universo. O núcleo urbano espalhado ao nível do chão é mais importante do que o espaço infinito que perpassa sobre as cabeças. A nota de humor se apresenta com a primeira imagem que se enquadra na lente da luneta. Dona Dulce, a bela funcionária dos Correios, musa que virava a cabeça da população masculina local, inocente quanto ao fato de estar sendo observada, se exibe lá embaixo em esplendorosa nudez.

A caracterização da realidade de Transvalina, nos termos em que o texto literário a concebe, alcança resultados mais bem-sucedidos, no meu entender, em três contos: “Os rapapés da despedida”, “O regime de trocas de Transvalina” e “As trocas humanas, seu desvalor”. No primeiro, assistimos à quixotesca paixão unilateral do Profeta por dona Dulce, que termina numa explosão de despeito daquela figura exótica, ao ver os sonhos ruírem. No segundo, somos colocados a par de uma barganha de trapaceiros que se igualam na deslealdade, possuidores só de velhacaria e vontade de suplantar o companheiro que, na vida, marcha a seu lado. No último, somos apresentados a uma bizarra permuta de mulheres por dois compadres ambiciosos que, desejando se locupletar com qualquer coisa para suplantar o nada acontecer no plano existencial, não possuem nenhum escrúpulo em utilizar seres humanos como objetos de troca.

Quando deixa de ser utilizada a linguagem que permite a expressão do miraculoso que conforma a realidade de Transvalina, o nível de produção baixa. Em “A festa do poço”, em que a cidade aparece apenas como palco dos acontecimentos, a estória não consegue transpor os limites que a deixaria liberta do lugar comum.


* Rui Mourão é diretor do Museu da Inconfidência de Ouro Preto e romancista, autor de Boca de chafariz, Invasões do carrossel e Quando os demônios descem o morro

O zelador do céu e seus comparsas

. De Fábio Lucas
. Sarau das Letras
. 86 páginas

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